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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 13/05/2024

13 de Maio de 2024

Livros do Antigo Testamento (99)

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Livros do Antigo Testamento (99)

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29/03/2019 12:15 - Atualizado em 29/03/2019 12:17

Livros do Antigo Testamento (99) 0

29/03/2019 12:15 - Atualizado em 29/03/2019 12:17

Neste artigo desejo expor alguns princípios gerais deste magnífico livro sapiencial e poético: o Livro do Cântico dos Cânticos. Texto usado ao longo dos séculos para exprimir o amor entre Deus e Israel, e entre Cristo (Esposo) e sua Igreja (Esposa).

CÂNTICO DOS CÂNTICOS

O título representa, em hebraico, uma fórmula de superlativo; significa o mais belo dos cânticos ou o cântico maior e coincide com as duas primeiras palavras do texto.

Nessa espécie de introdução, muito sumária, a autoria do livro é atribuída a Salomão, como acontece com os Provérbios e a Sabedoria. Não sendo verosímil, tal atribuição exprime a fama de sábio que o antigo rei conservou na tradição hebraica (cf. 1 Rs 5,12-14). Com este espírito condizem bem algumas conotações salomônicas da própria figura do amado:

Pronunciou três mil sentenças e compôs mil e cinco poemas. Falou das árvores, desde o cedro do Líbano até o hissopo que brota dos muros; falou dos animais, das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinham pessoas ouvir a sabedoria de Salomão, da parte de todos os reis da terra que tinham ouvido falar de sua sabedoria (Rs 5, 12ss).

GÊNERO LITERÁRIO E ESTRUTURA LITERÁRIA

Apesar da grande antiguidade do tema da poesia lírica nas culturas orientais, os eruditos tendem atualmente a situar, com bastante consenso, a origem do texto na época pós-exílica recente, possivelmente na Palestina.

É universalmente aceito que o código utilizado para escrever o Cântico dos Cânticos é o de um epitalâmico ou cântico nupcial.

Neste gênero literário, e nesta obra em concreto, estão presentes os modelos de poesia lírica que floresceram no Próximo Oriente Antigo, tanto na Mesopotâmia como no Egito. Talvez este último tenha servido, particularmente, de modelo para o autor hebraico do Cântico. Derivará ele das canções de divertimento egípcias? Teodoro de Mopsuéstia tinha alguma razão quando o descrevia como encenação literária das núpcias de Salomão com uma filha do faraó?

Na literatura mesopotâmica temos um paralelo tentador: os textos religiosos sobre Dummuzi e Inanna, textos religiosos de comprovada utilização cultual, para simbolizar as grandes questões da fertilidade e da sexualidade com um casamento divino que serve de paradigma. Em que medida a dramática da sexualidade deste livro não depende daquela mentalidade hierogâmica?1

No folclore siro-palestinense há também um ritual de matrimônio cuja ação decorre em sete dias festivos.

O núcleo central é constituído pela coroação dos esposos, à semelhança de uma coroação real, e sublinhado por vários cantos; exalta a beleza física dos amantes e os ideais guerreiros do grupo.

Por aqui se pode ver a sutileza de sentimentos e emoções na relação amorosa, de que o homem oriental adquirira consciência e que formulava como uma dimensão transcendente da sua própria experiência humana.

A sublimidade das vivências que integram a experiência do amor constitui, de imediato e por si mesma, em um importantíssimo conteúdo para a leitura do Cântico.

O gênero literário da poesia lírica, estruturada segundo o modelo estilístico e teatral de um epitalâmico, pode também explicar a composição literária deste poema em quadros, cuja delimitação e atribuição a cada uma das duas principais personagens se torna difícil de fazer. Daí variarem tanto as opiniões sobre a divisão de um texto aparentemente muito simples.

A atual divisão em oito capítulos não significa sequer uma repartição do texto com maior evidência do que muitas outras já propostas. Para maior facilidade de leitura, identificaremos por “Ele” ou “Ela” a personagem que cada parte do poema parece sugerir.

TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

Apesar do que dissemos acima, a leitura do Cântico dos Cânticos está, sobretudo, marcada, desde sempre ou quase, por uma transposição de sentido que faz dele uma alegoria, em que o amado é Deus ou o Messias, novo Salomão, e a amada é Israel ou a Igreja, como nova comunidade de Israel.

Pode subsistir alguma dificuldade em definir quando é que começou esta leitura alegórica do Cântico. Há quem pense que tal significado já está presente no momento da composição do texto, como intenção primeira do autor. Pelo menos parece verosímil considerar que a atribuição de tal significado alegórico tenha constituído a razão principal para a inclusão definitiva deste livro no Cânon dos livros da Bíblia hebraica, no séc. I d.C..

Deste modo, o Cântico dos Cânticos transformou-se no principal veículo para exprimir uma antiga concepção bíblica da experiência religiosa, sobretudo como uma relação amorosa com Deus. Algumas das mais conseguidas formulações anteriores desta concepção de Deus encontravam-se em Oseias (Os 2,4-25), em Jeremias (Jr 2,20; 31,1) e Isaías (Is 57,3-33).

E assim, para além da leitura mais explícita na tradição judaica desde a antiguidade, que entende o Cântico dos Cânticos como uma grande alegoria messiânica, avulta, igualmente e com raízes bíblicas não menos antigas, a leitura deste poema como a metáfora universal da relação religiosa com Deus.

O NT fez a transposição da metáfora do esposo-esposa do AT para Cristo-Igreja (Ef 5,21-33; ver Jo 3,29; Ap 22,17). Aqui se joga uma subtilíssima concepção de Deus, ainda não suficientemente explorada; e aqui se encontra o essencial da leitura mística e poética que o Cântico dos Cânticos tem recebido na tradição ocidental e cristã e da qual podemos dar como exemplos maiores as leituras de São Bernardo, na Idade Média, e de São João da Cruz, na Idade Moderna.

 

1  ‘Hierogamia’: Palavra grega que significa “casamento sagrado”. Simboliza, em geral, a imagem primordial e também ideal de qualquer casamento. Em boa parte das tradições mundiais está ligado à ideia de ligação entre o céu e a Terra, origem de toda a vida. Na mitologia grega temos várias ‘hierogamias’, vários “casamentos sagrados”. De Zeus e Hera, o grande Deus da Superioridade e inquietação, com a grande deusa da Honra e da palavra dada, de Posídon e Anfitrite, deus e deusa dos mares e maremotos dos afetos, até a união mística, a convergência transmutadora de energias de Hades e Perséfone, uma realidade conjugal única. Cf. https://www.facebook.com/MitoeMente/posts/hierogamiapalavra-grega-que-significa-casamento-sagrado-simboliza-em-geral-a-ima/213831832412822/


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29/03/2019 12:15 - Atualizado em 29/03/2019 12:17

Neste artigo desejo expor alguns princípios gerais deste magnífico livro sapiencial e poético: o Livro do Cântico dos Cânticos. Texto usado ao longo dos séculos para exprimir o amor entre Deus e Israel, e entre Cristo (Esposo) e sua Igreja (Esposa).

CÂNTICO DOS CÂNTICOS

O título representa, em hebraico, uma fórmula de superlativo; significa o mais belo dos cânticos ou o cântico maior e coincide com as duas primeiras palavras do texto.

Nessa espécie de introdução, muito sumária, a autoria do livro é atribuída a Salomão, como acontece com os Provérbios e a Sabedoria. Não sendo verosímil, tal atribuição exprime a fama de sábio que o antigo rei conservou na tradição hebraica (cf. 1 Rs 5,12-14). Com este espírito condizem bem algumas conotações salomônicas da própria figura do amado:

Pronunciou três mil sentenças e compôs mil e cinco poemas. Falou das árvores, desde o cedro do Líbano até o hissopo que brota dos muros; falou dos animais, das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinham pessoas ouvir a sabedoria de Salomão, da parte de todos os reis da terra que tinham ouvido falar de sua sabedoria (Rs 5, 12ss).

GÊNERO LITERÁRIO E ESTRUTURA LITERÁRIA

Apesar da grande antiguidade do tema da poesia lírica nas culturas orientais, os eruditos tendem atualmente a situar, com bastante consenso, a origem do texto na época pós-exílica recente, possivelmente na Palestina.

É universalmente aceito que o código utilizado para escrever o Cântico dos Cânticos é o de um epitalâmico ou cântico nupcial.

Neste gênero literário, e nesta obra em concreto, estão presentes os modelos de poesia lírica que floresceram no Próximo Oriente Antigo, tanto na Mesopotâmia como no Egito. Talvez este último tenha servido, particularmente, de modelo para o autor hebraico do Cântico. Derivará ele das canções de divertimento egípcias? Teodoro de Mopsuéstia tinha alguma razão quando o descrevia como encenação literária das núpcias de Salomão com uma filha do faraó?

Na literatura mesopotâmica temos um paralelo tentador: os textos religiosos sobre Dummuzi e Inanna, textos religiosos de comprovada utilização cultual, para simbolizar as grandes questões da fertilidade e da sexualidade com um casamento divino que serve de paradigma. Em que medida a dramática da sexualidade deste livro não depende daquela mentalidade hierogâmica?1

No folclore siro-palestinense há também um ritual de matrimônio cuja ação decorre em sete dias festivos.

O núcleo central é constituído pela coroação dos esposos, à semelhança de uma coroação real, e sublinhado por vários cantos; exalta a beleza física dos amantes e os ideais guerreiros do grupo.

Por aqui se pode ver a sutileza de sentimentos e emoções na relação amorosa, de que o homem oriental adquirira consciência e que formulava como uma dimensão transcendente da sua própria experiência humana.

A sublimidade das vivências que integram a experiência do amor constitui, de imediato e por si mesma, em um importantíssimo conteúdo para a leitura do Cântico.

O gênero literário da poesia lírica, estruturada segundo o modelo estilístico e teatral de um epitalâmico, pode também explicar a composição literária deste poema em quadros, cuja delimitação e atribuição a cada uma das duas principais personagens se torna difícil de fazer. Daí variarem tanto as opiniões sobre a divisão de um texto aparentemente muito simples.

A atual divisão em oito capítulos não significa sequer uma repartição do texto com maior evidência do que muitas outras já propostas. Para maior facilidade de leitura, identificaremos por “Ele” ou “Ela” a personagem que cada parte do poema parece sugerir.

TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

Apesar do que dissemos acima, a leitura do Cântico dos Cânticos está, sobretudo, marcada, desde sempre ou quase, por uma transposição de sentido que faz dele uma alegoria, em que o amado é Deus ou o Messias, novo Salomão, e a amada é Israel ou a Igreja, como nova comunidade de Israel.

Pode subsistir alguma dificuldade em definir quando é que começou esta leitura alegórica do Cântico. Há quem pense que tal significado já está presente no momento da composição do texto, como intenção primeira do autor. Pelo menos parece verosímil considerar que a atribuição de tal significado alegórico tenha constituído a razão principal para a inclusão definitiva deste livro no Cânon dos livros da Bíblia hebraica, no séc. I d.C..

Deste modo, o Cântico dos Cânticos transformou-se no principal veículo para exprimir uma antiga concepção bíblica da experiência religiosa, sobretudo como uma relação amorosa com Deus. Algumas das mais conseguidas formulações anteriores desta concepção de Deus encontravam-se em Oseias (Os 2,4-25), em Jeremias (Jr 2,20; 31,1) e Isaías (Is 57,3-33).

E assim, para além da leitura mais explícita na tradição judaica desde a antiguidade, que entende o Cântico dos Cânticos como uma grande alegoria messiânica, avulta, igualmente e com raízes bíblicas não menos antigas, a leitura deste poema como a metáfora universal da relação religiosa com Deus.

O NT fez a transposição da metáfora do esposo-esposa do AT para Cristo-Igreja (Ef 5,21-33; ver Jo 3,29; Ap 22,17). Aqui se joga uma subtilíssima concepção de Deus, ainda não suficientemente explorada; e aqui se encontra o essencial da leitura mística e poética que o Cântico dos Cânticos tem recebido na tradição ocidental e cristã e da qual podemos dar como exemplos maiores as leituras de São Bernardo, na Idade Média, e de São João da Cruz, na Idade Moderna.

 

1  ‘Hierogamia’: Palavra grega que significa “casamento sagrado”. Simboliza, em geral, a imagem primordial e também ideal de qualquer casamento. Em boa parte das tradições mundiais está ligado à ideia de ligação entre o céu e a Terra, origem de toda a vida. Na mitologia grega temos várias ‘hierogamias’, vários “casamentos sagrados”. De Zeus e Hera, o grande Deus da Superioridade e inquietação, com a grande deusa da Honra e da palavra dada, de Posídon e Anfitrite, deus e deusa dos mares e maremotos dos afetos, até a união mística, a convergência transmutadora de energias de Hades e Perséfone, uma realidade conjugal única. Cf. https://www.facebook.com/MitoeMente/posts/hierogamiapalavra-grega-que-significa-casamento-sagrado-simboliza-em-geral-a-ima/213831832412822/


Padre Pedro Paulo Alves dos Santos
Autor

Padre Pedro Paulo Alves dos Santos

Doutor em Teologia Bíblica