03 de Fevereiro de 2025
Francisco e Dostoiévski
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11/10/2013 17:39 - Atualizado em 11/10/2013 17:39
Francisco e Dostoiévski 0
11/10/2013 17:39 - Atualizado em 11/10/2013 17:39
Em entrevista à “Civiltà Catollica”, o Papa Francisco declarou com ênfase: “Gosto muitíssimo de Dostoiévski”. Nada comentou ou explicou a respeito. Sabemos, porém, que o escritor russo do século XIX, nascido em 1821 e falecido em 1881, produziu excelente literatura cujos personagens expressam atitudes patológicas: crimes, assassinatos, suicídios, loucura. Ambienta-se nas camadas pobres e miseráveis da sociedade. O escritor nos faz ver o fenômeno da tragédia humana no atormentado Século das Luzes. É a insuficiência da razão.
Na conclusão do romance Crime e Castigo, o personagem Raskólnikov, sonha com um mundo que padece de “um flagelo terrível e sem precedentes”. Ele se vê incluído no sonho, pois a visão do caos é universal: “eram atacados por aquela moléstia e perdiam a razão”; “Ninguém se entendia sobre o bem e sobre o mal, nem sabia quem se havia de condenar e quem se havia de absolver”; “Matavam-se uns aos outros, movidos por uma cólera absurda”; “Houve incêndios e fome. Homens e coisas pereciam. O flagelo estendia-se cada vez mais”; “No mundo inteiro só podiam salvar-se alguns homens, predestinados a refazer o gênero humano, a renovar a terra, mas ninguém via esses homens em parte alguma; ninguém ouvia as suas palavras”. Pesadelo! A incapacidade visual e auditiva sinaliza a urgência de humanismo novo.
O Papa, leitor de Dostoiévski, ao contrário, não sonha a tragédia. Atento, enxerga-a acordado. Com olhos abertos. No cenário do mundo desumano nos convoca a ver e a ouvir. Oferece remédios simples e caseiros, e ingênuos na aparência: misericórdia proativa, amor desinteressado, pobreza evangélica. Assim, afasta-se de soluções rápidas, reducionistas e ideológicas ou técnico-científicas que foram aplicadas às políticas dos séc. XIX e XX. Tais políticas aumentaram as desigualdades e agravaram as tragédias sociais. Vê nosso século, apenas nascido, atormentado por males idênticos; e ainda carente de humanismo integral.
Sem passadismo nem futurismo utópico, olha a Igreja também bastante ferida. Sua visão é a da prática medicinal humanitária. “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... É necessário começar do básico”.
Não ocorre com a visão do Papa Francisco o pesadelo de Raskólnikov: “ninguém via esses homens... ninguém ouvia as suas palavras”. Exceto o narrador. É que o próprio Papa se faz ver e ouvir, despertando-nos para refazer e renovar. Compromete-se com sua própria liderança e visibilidade. Difícil ficar indiferente diante dele, pois mostra o diagnóstico e o tratamento pela aplicação da ternura do coração. Achará seguidores e não só admiradores ou opositores?
No discurso aos bispos do CELAM, disse-lhes da “revolução da ternura”. Retomou duas categorias que tem repetido: a proximidade e o encontro. Quanto à primeira categoria se prolonga na segunda, pois uma existe com a outra. “Sem proximidade, sem ternura, sem carinho, ignora-se a ‘revolução da ternura’ que provocou a encarnação do Verbo.” “A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro.” A suavidade do discurso e da prática do Papa é empenho redobrado do amor descentrado. É mística de encarnação. É esvaziamento do eu egoísta e narcísico. Não pode ser apenas mudança minimalista de tom.
Francisco e Dostoiévski
11/10/2013 17:39 - Atualizado em 11/10/2013 17:39
Em entrevista à “Civiltà Catollica”, o Papa Francisco declarou com ênfase: “Gosto muitíssimo de Dostoiévski”. Nada comentou ou explicou a respeito. Sabemos, porém, que o escritor russo do século XIX, nascido em 1821 e falecido em 1881, produziu excelente literatura cujos personagens expressam atitudes patológicas: crimes, assassinatos, suicídios, loucura. Ambienta-se nas camadas pobres e miseráveis da sociedade. O escritor nos faz ver o fenômeno da tragédia humana no atormentado Século das Luzes. É a insuficiência da razão.
Na conclusão do romance Crime e Castigo, o personagem Raskólnikov, sonha com um mundo que padece de “um flagelo terrível e sem precedentes”. Ele se vê incluído no sonho, pois a visão do caos é universal: “eram atacados por aquela moléstia e perdiam a razão”; “Ninguém se entendia sobre o bem e sobre o mal, nem sabia quem se havia de condenar e quem se havia de absolver”; “Matavam-se uns aos outros, movidos por uma cólera absurda”; “Houve incêndios e fome. Homens e coisas pereciam. O flagelo estendia-se cada vez mais”; “No mundo inteiro só podiam salvar-se alguns homens, predestinados a refazer o gênero humano, a renovar a terra, mas ninguém via esses homens em parte alguma; ninguém ouvia as suas palavras”. Pesadelo! A incapacidade visual e auditiva sinaliza a urgência de humanismo novo.
O Papa, leitor de Dostoiévski, ao contrário, não sonha a tragédia. Atento, enxerga-a acordado. Com olhos abertos. No cenário do mundo desumano nos convoca a ver e a ouvir. Oferece remédios simples e caseiros, e ingênuos na aparência: misericórdia proativa, amor desinteressado, pobreza evangélica. Assim, afasta-se de soluções rápidas, reducionistas e ideológicas ou técnico-científicas que foram aplicadas às políticas dos séc. XIX e XX. Tais políticas aumentaram as desigualdades e agravaram as tragédias sociais. Vê nosso século, apenas nascido, atormentado por males idênticos; e ainda carente de humanismo integral.
Sem passadismo nem futurismo utópico, olha a Igreja também bastante ferida. Sua visão é a da prática medicinal humanitária. “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... É necessário começar do básico”.
Não ocorre com a visão do Papa Francisco o pesadelo de Raskólnikov: “ninguém via esses homens... ninguém ouvia as suas palavras”. Exceto o narrador. É que o próprio Papa se faz ver e ouvir, despertando-nos para refazer e renovar. Compromete-se com sua própria liderança e visibilidade. Difícil ficar indiferente diante dele, pois mostra o diagnóstico e o tratamento pela aplicação da ternura do coração. Achará seguidores e não só admiradores ou opositores?
No discurso aos bispos do CELAM, disse-lhes da “revolução da ternura”. Retomou duas categorias que tem repetido: a proximidade e o encontro. Quanto à primeira categoria se prolonga na segunda, pois uma existe com a outra. “Sem proximidade, sem ternura, sem carinho, ignora-se a ‘revolução da ternura’ que provocou a encarnação do Verbo.” “A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro.” A suavidade do discurso e da prática do Papa é empenho redobrado do amor descentrado. É mística de encarnação. É esvaziamento do eu egoísta e narcísico. Não pode ser apenas mudança minimalista de tom.
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