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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 27/04/2024

27 de Abril de 2024

Cardeal Amato: Diálogo inter-religioso: Significado e valor

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27 de Abril de 2024

Cardeal Amato: Diálogo inter-religioso: Significado e valor

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29/01/2015 16:49 - Atualizado em 29/01/2015 16:50
Por: Redação

Cardeal Amato: Diálogo inter-religioso: Significado e valor 0

1. Diálogo da caridade e diálogo da verdade

No diálogo inter-religioso podem-se distinguir mas não separar, duas modalidades: o diálogo da caridade, que tende a construir uma civilização humana reconciliada e pacífica e o diálogo da verdade, que procura por sua vez, discernir a verdade das singulares crenças religiosas.

O diálogo da caridade, pode-se manifestar antes de tudo, no diálogo da vida, mediante o respeito do interlocutor como pessoa pertencente à mesma humanidade e portanto digna de acolhimento, de estima e também de amizade. Tal diálogo pode-se efetivar, em segundo lugar, no diálogo da ação, que implica a colaboração entre as religiões do mundo para alcançar-se a paz entre as nações, para a defesa da natureza e das suas leis, para a proteção da vida, sobretudo dos mais débeis, para a solidariedade nos bens da terra, para a tutela da liberdade de toda a pessoa humana, sobretudo da liberdade religiosa, para a afirmação da justiça, da igualdade, da fraternidade, para a superação dos aspectos negativos da globalização, para a eliminação da pobreza e da fome no mundo. Como se vê, o diálogo da caridade abre um horizonte sem limites como é ilimitada a caridade de Deus, difundida nos nossos corações.

A segunda articulação do diálogo inter-religioso é o diálogo da verdade, que implica a liberdade de confrontar-se sobre os conteúdos das próprias convições religiosas, no respeito da consciência dos outros e no reconhecimento da sinceridade do interlocutor. Trata-se de um diálogo difícil, que não se orienta para uma religião universal com um mínimo denominador comum, mas que convida os interlocutores a explicitar as características essenciais das suas crenças religiosas. Tenha-se presente que todas as grandes religiões e não só o cristianismo antepõem a pretensão de verdade e de universalidade. Por isso o diálogo da verdade é indispensável para um discernimento objetivo da realidade das coisas.

Apresentarei algumas reflexões só sobre este diálogo da verdade, prometendo que se trata de acenos sumários, considerando que a Igreja tem uma longuíssima experiência deste diálogo.

Antes de mais, deve-se evitar um diálogo inter-religioso genérico, que não tenha em conta a específica identidade de cada interlocutor. O diálogo inter-religioso, como de modo análogo o diálogo ecuménico, exige um confronto bilateral, no qual os interlocutores possam ser considerados na sua precisa originalidade e assim manifestar a sua “verdade”.

Em segundo lugar, importa que o diálogo inter-religioso da verdade aponte sobre os conteúdos essenciais das diversas crenças e portanto sobre a sua visão de Deus (se o referem), do homem e do cosmos. O diálogo da verdade deve confrontar-se em concreto com as convicções religiosas, éticas, educativas, políticas e culturais, numa palavra, do núcleo duro da identidade religiosa do interlocutor. Importa, pois, evitar confrontos genéricos, fundados só sobre análises fenomenológicas superficiais, para abrir-se antes a um encontro bilateral aberto e franco sobre as respectivas propostas religiosas em relação à verdade sobre Deus, sobre o homem, sobre o cosmos. Isto supõe um bom e articulado conhecimento da própria fé e também uma completa informação sobre as crenças dos outros. Tal diálogo da verdade não se pode improvisar, sem o risco de banalizar e talvez também de trair as convicções próprias e as dos outros.

Certamente, numa cultura, como a pós-moderna, na qual prevalece a opinião e na qual a verdade parece ser uma miragem evanescente, o diálogo da verdade aparece como um desafio contra-corrente. Isto implica uma certa mudança na dinâmica do diálogo inter-religioso.

A lição de Bento XVI em Ratisbona pode ser considerada como o início de um novo comportamento, que sai dos esquemas restritivos de um diálogo diplomático, de um dialogue de bureau (como o classificaram alguns Bispos) distraído das consequências de um diálogo virtual avulso da realidade, para entrar no vivo de um dialogue de vérité et de vie, que meta em jogo a própria existência dos interlocutores, na globalidade e na complexidade do seu projeto de realização humana e religiosa.

Obviamente – e não podia ser diversamente – as minhas considerações partem de um quadro de referência cristã e são acompanhadas de constatações históricas e de reflexões filosóficas e teológicas. Para responder a quem nos pergunta razões da esperança cristã, importa fazer referência à verdade. São João afirma de fato: «Este é o discípulo que dá testemunho sobre estes fatos e escreveu-os; e nós sabemos que o seu testemunho é verdadeiro (?ληθ?ς ?στιν ? μαρτυρ?α α?το?)» (Jo. 21,24).

2. O cristianismo, religião verdadeira

O diálogo é um género literário de longa tradição, presente na filosofia grega – os célebres diálogos de Platão – e também nos Evangelhos. No confronto inter-religioso, o cristianismo antigo teve que afrontar alguns desafios, co-relacionados e ainda hoje atuais: a justificação racional da fé, a questão da sua verdade e a possibilidade da sua atuação na existência concreta dos cristãos.

Justino (séc. II), no seu diálogo com o hebreu Trifão, considera seja o Antigo Testamento, seja a filosofia grega, como duas estradas que conduzem a Cristo, ao Logos: «Eis porque – comenta Bento XVI numa sua catequese – a filosofia grega não se pode opor à verdade evangélica e os cristãos podem alcançar-vos com confiança, como a um bem próprio.

Tertuliano individualiza as diferenças entre a nova religião e as principais correntes filosóficas no triunfo da caridade do Espírito, que à violência dos perseguidores opõe o sangue, o sofrimento e a paciência dos mártires: «Porquanto refinada – escreve o Africano referindo-se aos que denegriam o cristianismo – para nada serva a vossa crueldade: antes, para a nossa comunidade, essa é um convite. A cada golpe vosso de espada tornamo-nos mais numerosos: o sangue dos cristãos é semente! (semen est sanguis christianorum!»4. Como bom apologista ele adverte também a exigência de uma comunicação positiva do cristianismo: «Por isso ele adopta o método especulativo para ilustrar os fundamentos racionais do dogma cristão. Aprofunda-os de maneira sistemática, a começar pela discrição do “Deus dos cristãos”: “Aquele que nós adoramos – atesta o Apologista – é um Deus único”. E prossegue, empregando a antítese e os paradoxo característicos da sua linguagem: “Ele é invisível, também se é visto; intocável, ainda que presente através da graça; inconcebível, ainda que os sentidos humanos o possam conceber; por isso é verdadeiro e grande!

Os Padres tiveram que fazer frente às numerosas críticas anti-cristãs dos escritores e dos filósofos pagãos, e sobretudo do filósofo neo-platónico Porfírio (séc. III), cujas considerações eram tão claras quanto obscuras eram as de Plotino, seu mestre.6 O seu anti-cristianismo – tal como se depreende dos fragmentos do Adversus Christianos e dos fragmentos contidos nas obras dos Padres – tem uma tríplice motivação. Antes de mais a rejeição das Escrituras, sobretudo dos evangelhos, desde o momento que os evangelistas teriam sido comediantes e impostores e teriam praticado a magia, enganando a gente ignorante. Porfírio nega pois a encarnação e a ressurreição da carne enquanto irreconciliável com o dualismo platónico da separação absoluta entre o inteligível e o sensível, este último considerado maus em si mesmo. Enfim, recusa ao cristianismo todo o seu carácter de novidade, desde o momento que a necessidade da conversão, a prática das boas obras para com o próximo, o respeito por todas as criaturas são valores defendidos também pela sabedoria grega. Estes argumentos serão retomados de seguida pelo imperador Juliano, no seu Contra Galilaeos. O imperador apóstata estava escandalizado com a pretensão de verdade avançada pelos cristãos comparativamente com as outras religiões. Para ele, cada povo devia ser livre de venerar as próprias divindades, expressões sempre parciais do divino transcendente.

Na mesma linha se colocava o senador Símaco (séc. IV), na sua defesa do pluralismo religioso e do relativismo, considerando igualmente válidos seja o culto à Deusa Vitória seja o culto cristão: Tudo quanto os homens adoram é justo que seja considerado um só e mesmo ser. Todos vemos os mesmos astros, o céu é comum, acolhe-nos o mesmo mundo. Que importa a forma como cada um procura a verdade? Não se pode existir uma só via para aceder a um assim tão grande mistério.

Destes acenos se nota súbito a ofensiva maciça e argumentada contra o cristianismo por parte da cultura do tempo. E a Igreja através dos seus pastores e dos seus homens de génio responde em modo também ele firme e articulado.

Por exemplo na resposta de Santo Ambrósio a Símaco, afirma-se que o mistério de Deus o pode ensinar só Deus e não o homem, que nem sequer se conhece a si mesmo: «[Símaco] diz que não pode haver uma só via para aceder a um assim tão grande mistério. O que vós ignorais nós o conhecemos pela própria voz de Deus. E o que vós procurais através de conjecturas, nós o apreendemos da própria sabedoria e da verdade de Deus [“Quod vos suspicionibus quaeritis, ex ipsa sapientia Dei et veritate compertum habemus.

Também Arnóbio de Sica (séc. III-IV) escreveu uma apologia do cristianismo Adversus nationes (Contra os pagãos), cuja linha unitária é dada pela paixão pela verdade no confronto serrado entre a fé cristã e o politeísmo pagão, por ele bem conhecido e que antes fora a sua referência existencial. Ele sublinha a capacidade da ratio de ajuizar retamente e de acolher a verdade cristã. O seu método centrado sobre a dúvida/certeza é expressão dialética da falsidade/verdade.

Sobre a questão da verdadeira religião os cristãos admitem que o mistério de Deus é inacessível só com as forças humanas. Mas a revelação de Cristo é a própria palavra de Deus que por si mesmo se mostra com sabedoria e verdade. Daqui a consequência de que só a religião cristã é a verdadeira religião. Esta não é uma gnose, ou seja uma salvação pelo conhecimento, mas é um fato histórico, o mistério salvífico da encarnação, paixão, morte e ressurreição de Cristo, Filho de Deus, mediante o qual é oferecia à humanidade a comunhão com Deus, como dom de vida e de verdade. Também o poeta cristão Aurélio Prudêncio (séc. IV) rejeita o relativismo de Símaco, afirmando que a religião que renuncia à razão e à procura da verdade, se torna superstição.

Santo Agostinho, no tratado De vera religione entende dissuadir o seu benfeitor Romaniano do monaquismo e conduzi-lo à Igreja. Na obra criticam-se os cultos pagãos e apresenta-se a verdadeira religião, como adoração do Deus Uno e Trino.

Significativo é o contributo do misterioso escritor conhecido como Dionísio Areopagita (séc. VI), que, a exemplo de Paulo, põe o Evangelho em diálogo com a sabedoria grega. A sua intenção era a procura da verdade: «Não quero fazer polémicas – afirma ele numa sua Epístola –; falo simplesmente da verdade, procuro a verdade.

Este seu posicionamento vai ao coração do verdadeiro espírito de todo o diálogo: a procura da verdade. Por isso Dionísio – comenta Bento XVI – nos «aparece como um grande mediador no diálogo moderno entre o cristianismo e as teologias místicas da Ásia»12. E, a propósito do diálogo inter-religioso, o Papa acrescenta: «Vê-se assim que o diálogo não aceita a superficialidade. Precisamente quando alguém entra na profundidade do encontro

3. O cristianismo, religião para todos

Os Padres da Igreja estiveram portanto atentos à justificação racional do cristianismo, no confronto pacífico mas por vezes também polémico com outras concepções filosóficas e religiosas, fazendo uso da recta ratio como via para a verdade divina. Com base nesta justificação racional, estes mostraram também a exemplaridade existencial dos cristãos. Não se explicaria, de fato, a extraordinária e rápida difusão do cristianismo no mundo antigo, que conseguiu integrar filosofias profundas e a superar religiões consideradas então invencíveis. Certamente, foram grandes a dedicação missionária dos apóstolos, sobretudo de Paulo de Tarso, e o testemunho dos mártires, mas um contributo inegável foi dado pelo carácter prático do cristianismo, tornado cedo uma religião para todos.

Cristão, para Inácio de Antioquia, era aquele que vivia em harmonia com a sua fé14. Para Orígenes, a verdade do cristianismo demonstrava-se metendo-a em prática15. A vida cristã, de fato, não é só interioridade, mas se manifesta na conduta e no diálogo dos fiéis. Para João Crisóstomo, o cristão deve ser reconhecido em toda a parte pelo seu modo de caminhar, de olhar, por todo o seu comportamento exterior e pela sua própria voz.

Perante a crítica de Celso, segundo o qual a moral cristã não tinha nada de original, Orígenes não protestou, antes explicou que a presumida falta de novidade da ética cristã dependia do fato que Deus tinha querido fornecer critérios comuns para toda a humanidade, para permitir que o veredicto do juízo final se baseasse em critérios verdadeiramente iguais para todos.

Dois são os elementos que concernem ao essencial cumprimento do pensamento antigo por parte do cristianismo. Antes de mais, a verdade cristã não é uma verdade só para especialistas, mas para todos; não é uma verdade só teórica, mas também prática; não é só para a academia, mas também para a vida concreta. Trata-se da simplicidade cristã, longe das fabulações gnósticas. Não só homens sapientes, mas também pessoas simples contribuíram para difundir o cristianismo. Muitas vezes os Padres chamam aos cristãos “verdadeiros filósofos”.18 Jerónimo perguntava-se: Quem lê Aristóteles? Quantos conhecem Platão ou os seus livros, ou pelo menos o seu nome? […]. Pelo contrário, da nossa gente simples e dos nossos pescadores, todos falam, deles ressoa o mundo inteiro. Por isso é necessário propor as suas palavras simples numa linguagem igualmente simples.

Em segundo lugar, a simplicidade cristã não é simplismo ou superficialidade, mas docta ignorantia, por analogia com a ignorância socrática. Esta indica um conhecimento mais alto que supera a dialética dos filósofos e dos reitores e que consegue atingir todos. Se Platão não conseguira sequer a convencer o seu discípulo Aristóteles, os simples conseguiram convencer não apenas os gregos e os romanos, mas também os egípcios e tantos outros povos do fato de que a alma é imortal, que as paixões podem ser domadas e que o homem pode ser divinizado.

A pretensão da verdade e da universalidade do cristianismo é portanto ínsita desde o início na sua identidade, testemunhada não tanto por raciocínios pedantes e sinuosos, mas de uma prática de vida humana legível e exemplar. E tal verdade foi difundida não com a coerção mas com a convicção. Na base do anúncio cristão está o princípio de liberdade.

4. O Cristianismo e o diálogo da verdade

Também a Idade Média e Idade Moderna hospedam obras e autores que adoptaram o género literário “diálogo” na justificação da verdade cristã. Vejam-se por exemplo, o Diálogo entre um filósofo, um hebreu e um cristão, de Pedro Abelardo, escrito por volta de 1141; a Disputa entre um hebreu e um cristão de Gilberto Crispim, abade de Westminster (1046-1117); o Livro do gentio e dos três sábios de Raimundo Lullo, escrito entre 1270 e 1273. Este género dialogista foi também cultivado pelo jesuíta João Batista Eliano, hebreu convertido originário de Alexandria do Egito, que em 1579 publicou em Roma um seu tratado em árabe. Outras obras em forma de diálogo foram publicadas pelo jesuíta francês Miguel Nau e do seu confrade espanhol Emanuel Sanz.

Depois da lectio de Bento XVI em Regensburg, não se pode não acenar ao imperador bizantino Manuel (1350-1425), filho de João V Paleólogo e vassalo do Sultão turco Murad. Deste imperador iluminado que viveu um difícil período de decadência política, são dignos de atenção os seus Diálogos com um muçulmano, nos quais se debatem os problemas que desde há séculos estavam presentes nas controvérsias entre cristãos e muçulmanos. A originalidade desta obra é dada pelo método, que reduz o recurso ao argumento da escritura, comum à tradição teológica, e entrega-se em vez disso, à razão e aos dados racionais. Para além disso, o diálogo entre Manuel e o Mudarris (sábio) muçulmano não é uma fictio literária mas corresponde a conversas realmente acontecidas e que tocam todos os pontos mais importantes das duas religiões.

Um exemplo deste diálogo franco e paritário é dado pela argumentação de Manuel relativa às leis de Moisés, de Jesus e de Maomé. Segundo ele, quanto se encontra de positivo na lei de Maomé foi adquirido da de Moisés (monoteísmo, circuncisão…), com alguns acréscimos não certamente felizes.20 O Mudarris, por sua vez, rebate que a Lei de Cristo é «bela e boa, mas pelo fato de ser assim árdua e pesada, dificilmente pode ser útil […]. A Lei de Maomé, pelo contrário, tomou a via intermédia e dando disposições que se podem satisfazer, bem mais suaves e adaptadas ao homem, supera de todo as outras Leis precisamente pelo fato de ser moderada.

A excelência da Lei de Maomé é dada, portanto, por ser uma via média entre as outras duas. Jesus teria presumido demasiado das forças humanas, sem ter em conta a fragilidade congénita do homem. Os excessos da Lei de Cristo mencionados por Mudarris seriam: o ódio para com os próprios pais, o amor aos inimigos, a pobreza voluntária, a virgindade e o celibato voluntário. Por isso a Lei de Moisés seria defeituosa, a de Cristo desproporcionada, a de Maomé moderada, porque se mantém no justo meio-termo.

Manuel, utilizando argumentos da razão, fez logo notar a contradição do Mudarris que primeiro considera a Lei de Cristo bela e boa e depois considera negativo o conselho do celibato cristão.

Neste diálogo certamente podem-se encontrar pontos nos quais os interlocutores podiam encontrar-se, mas na realidade as suas posições doutrinais continuam inalteradas pelo que mais do que um diálogo trata-se de um dúplice monólogo. Também na utilização da razão, os dois interlocutores continuam sempre cada um no interior da sua visão doutrinal. Nenhum faz um “êxodo” para superar as visões paralelas e contrastantes e para encontrar-se num ponto. Continuam duas ilhas e a ponte de comunicação, que é o diálogo, na realidade não une dois mundos, mas mantêm-nos distintos.

Outros exemplos de diálogo entre cristianismo e outras religiões são oferecidos em algumas obras da primeira evangelização ameríndia. Por exemplo, nos Colóquios ou Práticas do franciscano Bernardino de Sahagún (+1590)22 as conversas têm lugar entre os missionários e os notáveis e os sacerdotes indígenas sobre o confronto entre as crenças locais e o cristianismo. Nos colóquios comparam-se os deuses sanguinários do lugar com a bondade do Deus cristão. No México era comum a prática dos sacrifícios humanos sobre os altares dos santuários astecas. O sacerdote com uma faca de pedra dura cortava o peito da vítima e retirava-lhe o coração que depois era oferecido à divindade. O contraste entre este uso tão cruel e o sacrifício de Jesus sobre a cruz constituiu um importante argumento a favor da conversão dos indígenas ao cristianismo. Os colóquios mostram o recíproco respeito dos interlocutores no avançar as justificações à sua respectiva crença religiosa. Das relações dos missionários se apreende o sentimento de alegria e de libertação dos índios convertidos, agarrados ao tremendo peso da sujeição a deuses impiedosos que deveriam ser aplacados também com sacrifícios humanos.

É sinal de culpável ignorância histórica ou de errada interpretação das fontes chamar a evangelização ameríndia como uma escravização dos povos e o Evangelho como uma má notícias e invocar o ressurgir das religiões nativas. Mas é mesmo desejável o ressurgimento destas religiões, se se tem em conta, por exemplo, do fato que em 1478, na consagração do templo principal dos Astecas, em quatro dias vinte mil homens, segundo as estimativas mais baixas, morreram sacrificados como vítimas humanas em honra do deus Sol sobre o altar de Tenochitlán? Sabe-se que os prisioneiros de guerra serviam como sacrifícios humanos. Para além disso, ofereciam-se aos deuses, homens, mulheres e crianças para obterem-se favores e afastarem-se castigos. Obviamente, aqui, não se trata de uma crueldade inata nestes povos, que segundo as relações dos primeiros missionários, eram pacíficos e gentis. Trata-se de preceitos religiosos que obrigavam em modo desapiedado os fiéis: «Seguramente – argumentava o então cardeal Joseph Ratzinger – este é um exemplo extremo, mas mostra assim sempre como não se devem ver automaticamente em todas as religiões vias de Deus para o homem e do homem para Deus.

Bento XVI, no seu livro Jesus de Nazaré, dialogou com o rabino Jacob Neusner, fascinado pelas palavras de Jesus no discurso da montanha. Neusner, um hebreu observante, cresceu em amizade com católicos e evangelistas, ensina na universidade juntamente com teólogos cristãos e nutre um profundo respeito nos confrontos da fé dos seus colegas cristãos, ainda que se mantenha solidamente convicto da validade da interpretação hebraica das Sacras Escrituras. O profundo respeito para com a fé cristã e a sua fidelidade ao judaísmo levaram-no a procurar o diálogo com Jesus. Tal diálogo versa sobre a verdade da pretensão avançada por Jesus de ser a nova Torah substitutiva da Torah mosaica.

Como se vê, o rabino centra logo o fundamento da identidade cristã: o auto-testemunho de Jesus Cristo. E também aqui, na liberdade das próprias convicções de fé, o rabino mantém a escolha de ser obediente ao Israel eterno e de não seguir Jesus: «Este é o ponto central do «susto» do hebreu observante Neusner perante a mensagem de Jesus e é o motivo central pelo qual ele não quer seguir Jesus e permanece fiel ao “Israel Eterno”: a centralidade do Eu de Jesus na sua mensagem que imprime uma nova direção a tudo.

5. A escola de Jesus

O problema das relações entre as várias religiões e sobretudo a afirmação da unicidade salvífica do mistério de Cristo e da Igreja põe o problema radical da verdade.26 No entanto a impressão do homem de hoje é que todas as religiões, não obstante a sua policromia de símbolos e estruturas, em última instancia exprimem a mesma coisa. O homem contemporâneo raramente se interroga sobre a verdade, mas assume um comportamento equidistante: as religiões são todas parcialmente verdadeiras, portanto partilháveis entre si, portanto nenhuma é verdadeira. Surge então a questão: Falar de verdade da fé é presunção ou dever?

O cristianismo hoje não pode não dialogar com as outras religiões, deve-as compreender e acolher. Mas porque nestas religiões podem sobreviver e afirmar-se os lados positivos, estas têm necessidade de «reconhecer o seu carácter de Advento, que as manda para Cristo.Esta é a grande pretensão com a qual a fé cristã entrou no mundo. Isto implica a obrigação moral de mandar todos os povos à escola de Jesus, pois Ele é a verdade em pessoa e por isso a via para ser-se homens.

Aos olhos do mundo, mas também no seu interior, a Igreja atravessa uma profunda crise precisamente pela sua pretensão de verdade universal. Hoje é-se mais propensos a considerar plausível a parábola budista do elefante e dos cegos, os quais identificavam o elefante a consoante as diversas partes do animal por eles tocadas. Hoje o confronto ou diálogo entre as religiões pode aparecer como uma disputa entre cegos de nascença. E o cristianismo não poderia reivindicar uma prospectiva mais favorável a este respeito. Pelo contrário, com a sua pretensão de verdade aumentaria a sua cegueira, porque partilharia a sua parte de verdade como verdade universal para todos. O cristianismo, no entanto, não é baseado em símbolos míticos ou sobre experiências místicas, mas sobre «aquele divino que pode ser percebido da análise racional da realidade.

A reivindicação do cristianismo de ser a vera religio funda-se sobre a consciência da realidade sobre Deus e sobre o homem. A sua pretensão de universalidade é baseada sobre a realidade e sobre a verdade do mistério da encarnação do Verbo. Deste modo o cristianismo torna supérflua qualquer outra pertença religiosa. Isto é intolerável para as religiões tolerantes de ontem e de hoje. Justino é uma figura sintomática a este respeito. O estudo de todas as filosofias tinha-o conduzido ao reconhecimento do cristianismo como a verdadeira filosofia, como a verdadeira religião. A convicção de que o cristianismo seja uma filosofia, e mais, que seja a filosofia perfeita, que se desenvolveu até à verdade sobre a vida, sobre a morte, sobre o destino do homem, dominou, como já acenado, a época patrística. No cristianismo, como religio vera, existe harmonia entre metafísica e história. Mais precisamente a verdade do cristianismo como religião mundial é a síntese entre metafísica e história: «In principio erat Verbum […] et Deus erat Verbum […]. Et Verbum caro factum est» (Jo. 1,1.14).

A motivação central do cristianismo como verdadeira religião reside no mistério de Cristo. Escrevia René Latourelle: «Uma vez que Cristo é a um tempo o mistério revelador e o mistério revelado, o mediador e a plenitude da revelação, segue-se que ele ocupa na fé cristã uma posição absolutamente única que distingue o cristianismo de todas as religiões, incluso o hebraísmo. O cristianismo é a única religião cuja revelação se incarna numa pessoa, que se apresenta como a verdade viva e absoluta. Outras religiões têm fundadores, mas nenhum destes (Buda, Confúcio, Zoroastro, Maomé) se propôs como objeto da fé dos seus discípulos. Crer em Cristo significa crer em Deus. Cristo não é um simples fundador de religião: ele é contemporaneamente imanente à história e o seu Transcendente absoluto, não um entre mil, mas o Único, o totalmente Outro.

Assim, o tema da encarnação torna-se um problema fundamental para a verdade da teologia cristã. Se de fato Deus se fez homem em Jesus de Nazaré então ele é a revelação definitiva de Deus. Não é um profeta que fala em nome de Deus, mas é a própria palavra de Deus. É o próprio Deus que fala pessoalmente à humanidade e que a salva e a conduz à comunhão consigo. Obviamente aqui está o escândalo do transcendente que se faz imanente e até mesmo mortal e enfim a afirmação de que a revelação de Jesus não exclui, mas inclui todas as realidades positivas das outras. Mais, o bem, o bom, o justo adscrevem ao mistério de Cristo a sua valência salvífica.

Perante um certo incómodo que se adverte nos confrontos da afirmação do cristianismo como religião verdadeira e universal33, João Paulo II advertia: «Constata-se, […] uma generalizada desconfiança relativamente a asserções globais e absolutas sobretudo da parte de quem pensa que a verdade resulte do consenso, e não da conformidade do intelecto com a realidade objetiva.

Para contrariar uma mentalidade fundamentalmente relativista, o Papa convidava os filósofos a procurar os fundamentos da verdade cristã: «Mas nem por isso posso, à luz da fé que reconhece em Jesus Cristo tal sentido último, deixar de encorajar os filósofos, cristãos ou não, a terem confiança nas capacidades da razão humana e a não prefixarem metas demasiado modestas à sua investigação filosófica. A lição da história deste milénio, quase a terminar, testemunha que a estrada a seguir é esta: não perder a paixão pela verdade última, nem o anseio de pesquisa, unidos à audácia de descobrir novos percursos. É a fé que incita a razão a sair de qualquer isolamento e a abraçar de bom grado qualquer risco por tudo o que é belo, bom e verdadeiro. Deste modo, a fé torna-se advogada convicta e convincente da razão.

É no mistério de Cristo, feito homem, que a verdade revelada se casa com a verdade humana numa única realidade: a própria pessoa do Verbo incarnado, sabedoria de Deus manifestada à humanidade inteira. O fenomenologista francês Michel Henry aprofunda esta temática na sua obra C’est moi la Vérité. É uma reflexão sobre a verdade do cristianismo,36 que reside no fato que Aquele que dizia ser o Messias era verdadeiramente o Messias, o Cristo, o Filho de Deus nascido antes dos séculos, portador da vida eterna: «Não é tanto o corpus dos textos do Novo Testamento que nos podem fazer aceder à Verdade, a esta Verdade absoluta de que se fala, mas pelo contrário, é esta Verdade e só essa que nos pode introduzir em si mesma.  

A verdade do cristianismo pode simplesmente autojustificar-se, revelando-se como verdade de Deus mesmo: «Esta Verdade que por si só tem o poder de revelar-se a si mesma, é a mesma de Deus […]. Só aquele que entrou na posse desta verdade absoluta pode, iluminado por esta, compreender quanto é dito no evangelho e que não é outra coisa que esta verdade absoluta que, revelando-se a si mesma, se revela também a ele».38 O filósofo de Montpellier fala portanto de um sono metafísico que paira sobre a humanidade, que parece viver numa cabine de simulação, onde se embate numa não presença, no nada, na mentira radical e portanto no Mal. Trata-se de uma situação metafísica que não é só a situação do ocidente, mas da humanidade enquanto tal. Na humanidade reduzida a este estado de vida aparente, não é um deus qualquer que pode salvar da morte, mas só aquele que é a Vida.39 O mistério de Cristo é a escolha da Verdade absoluta e da Vida na sua fonte.

Considerações semelhantes existem também no pensamento do filósofo inglês Roger Trigg que, contra a debilitação da razão do pensamento pós-moderno, reivindica a possibilidade de uma racionalidade universal e de uma verdade objetiva. É portanto necessário recuperar o realismo da verdade e a sua universalidade. Por isto Trigg rejeita os pressupostos relativistas de John Hick e da sua teologia pluralística das religiões.

A universalidade da verdade cristã motiva a missão universal que Jesus deu aos seus discípulos convidando-os a ir até aos extremos confins da terra: A Verdade, que é Cristo, impõe-se como autoridade universal que rege, estimula e faz crescer (cf. Ef 4,15) seja a teologia que a filosofia».

6. Jesus Cristo verdade do cristianismo

A pretensão do cristianismo não é só a de ser uma verdadeira religião, mas a única verdadeira religião que Deus quis para a salvação da humanidade. Trata-se de um pretensão excessiva, ofensiva para as outras religiões? Não seria melhor afirmar que se trata de uma religião verdadeira entre outras igualmente verdadeiras? Isto facilitaria a relação com as outras religiões, que seriam também essas vias, ainda que não absolutas, para aceder ao mistério insondável de Deus.

O cristianismo, no entanto, afirma que é a verdadeira religião não querida ou inventada pelo homem, mas querida pelo próprio Deus. Tem portanto uma origem divina, fruto de uma revelação divina. O cristianismo é uma religião revelada. E sendo Deus Verdade absoluta, o cristianismo é a verdadeira religião.

A sua verdade não depende só do ser melhor ou mais perfeita ou mais elevada do que as outras, mas do ser revelada por Deus: «Por isso a afirmação de que o cristianismo faz de ser a “verdadeira religião” não é um ato de orgulho religioso nem um sinal de menor apreço. Portanto não corresponderia à realidade das coisas, e por isso à verdade, a atitude daqueles cristãos que, por humildade ou para não ofender os outros, consideram o cristianismo uma entre tantas religiões do mundo. Nem, por outra parte, seria cristã a desatenção a quanto de bom e de válido existe nas outras religiões, que, ainda que obras do espírito humano, permanecem sempre, em medida maior ou menor, sob o influxo da graça de Deus.

O problema é a justificação desta pretensão por parte do cristianismo também porque outras religiões reivindicam o carácter de religiões reveladas.

A revelação cristã, contida na Sacra Escritura é histórica, não mítica, não acontece fora da história, mas na história e mediante fatos históricos e palavras cujo significado é manifestado mediante intérpretes – profetas, reis, sacerdotes… – que falam em nome de Deus. A revelação cristã encontra a sua plenitude e o seu cumprimento definitivo na encarnação e no mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. É ele a revelação suprema de Deus. É ele que não só revelou a verdade sobre Deus e sobre o homem, mas si auto-proclamou Verdade em pessoa.

É esta uma característica exclusiva do cristianismo, ausente em outras religiões. No cristianismo Jesus ocupa o lugar central. É ele a identidade do cristianismo.

Obviamente põe-se aqui a pergunta: quais são as provas para afirmar com certeza que Jesus de Nazaré é verdadeiramente o Filho de Deus, que nele foi confiada a revelação última de Deus e porque que Jesus é a Verdade absoluta?

Digamos logo que tais afirmações, ainda que não sendo contra a razão ou contra a história, vão para além dessas: «Não são racionalmente e historicamente evidentes a ponto de constringir ao consenso. São todavia razoáveis e portanto tais que, para aceitá-las, não se é constringido a renegar a razão e a história. São afirmações que têm a sua credibilidade, uma sua força de convicção, pelo que a adesão de fé que se dá a estas é razoável e motivada suficientemente.

Dois exemplos. A fé monoteísta de Israel, testemunhada no Antigo Testamento, está contra-corrente seja com as crenças dos povos confinantes, todos dedicados ao politeísmo e à idolatria, seja com os próprios gostos do povo hebraico, continuamente tentado pela idolatria (cf. O bezerro de ouro). O fato de que a crença na unicidade de Deus se tenha mantido é só explicável por uma particular intervenção de Deus. Mas é sobretudo a existência histórica de Jesus Cristo a coluna que estrutura o cristianismo. Os Evangelhos reportam as suas palavras, os seus milagres, os seus comportamentos, a sua especial comunhão com o Pai celeste, a sua consciência de ir de encontro a uma morte cruenta para a redenção da humanidade inteira, a sua ressurreição. São todos fatos históricos e “metahistóricos” que oferecem uma extraordinária base documental em sufrágio da sua realidade de ser o Filho de Deus, o revelador definitivo e o único redentor da humanidade.

Para além disso, a sobrevivência da Igreja por ele fundada que criou um novo modelo de homem, o homem da caridade, e um novo modelo de civilização, a civilização do amor, é também este um testemunho da verdade da religião cristã. Certamente a história mostra também as fragilidades dos batizados a todos os níveis, mas isso deve-se à fragilidade humana – já considerada na revelação de Jesus – e não à falta de verdade da revelação cristã.

Dito isto, é necessário, enfim, precisar que a afirmação de que o cristianismo é a verdadeira religião não justifica nem o fanatismo, a intolerância religiosa, fechar-se aos outros, nem a desvalorização ou o desprezo pelas outras religiões. Não significa que as outras religiões sejam totalmente falsas ou que os crentes das outras religiões estejam todos no erro. Quer-se só dizer que as outras religiões podem conter, além de valores positivos, também lacunas, imperfeições e por fim erros relativos à verdade sobre Deus e sobre o homem.

8. Implicações antropológicas do diálogo da verdade

Uma ulterior precisão diz respeito ao carácter da verdade cristã. O Concilio Vaticano II, declara que «os livros da Escritura ensinam firmemente, fielmente e sem erro a verdade que Deus para nossa salvação quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras».44 A verdade cristã tem uma precisa intencionalidade salvífica. Trata-se de uma verdade salvífica, «útil para ensinar, para convencer, para corrigir, para educar à justiça, afim de que o homem de Deus seja perfeito, adestrado em toda a obra boa» (2 Tm 3,10-17). Tal verdade bíblica é em alta concentração cristológica, do momento em que as Sacras Escrituras instruem «em ordem à salvação, que se obtém por meio da fé em Cristo Jesus» (2 Tm 3,15). Na Sacra Escritura encontra-se o Verbum Salutis, a Palavra da Salvação, Jesus Cristo. É esta intencionalidade salvífica cristológica que rege o motivo da verdade.45 A verdade bíblica é a comunicação da salvação ao homem mediante Jesus Cristo, “centro e verdade” de toda a Escritura. Ele é de fato,
Caminho, Verdade e Vida (Jo 14,6) e é Aquele que envia o Espírito de verdade (Jo.14, 17).

 A este ponto coloquemo-nos o problema do comportamento do cristão nos confrontos do diálogo da verdade. Antes de mais, o cristão não pode ocultar a própria identidade de fé, tal como o interlocutor não pode esconder as próprias crenças. O diálogo inter-religioso, da parte cristã, é um convite dirigido ao livre arbítrio do homem e à sua aspiração ao bem e ao verdadeiro: «Nada como a procura do bem e da verdade mete em jogo a liberdade humana, solicitando-a a uma adesão tal a ponto de envolver os aspectos fundamentais da vida. Este é de um modo particular o caso da verdade salvífica, que não é apenas objeto do pensamento, mas acontecimento que investe toda a pessoa – inteligência, vontade, sentimentos, atividades e projetos – quando esta adere a Cristo»46. A liberdade não é indiferença mas tensão ao bem. Nesta tensão para o bem e o verdadeiro é já em ação o Espírito Santo, «que cria afinidades e avizinha os corações à verdade, ajudando o conhecimento humano a maturar em sabedoria e em abandono confiante ao verdadeiro.

Neste contexto, algumas vezes, objeta-se sobre a legitimidade de propor aos outros quanto se retém verdadeiro para si mesmos. Tal vem considerado como um atentado à liberdade de consciência dos outros. Na realidade, esta compreensão da liberdade como desvinculada da verdade, é uma das expressões daquele relativismo gnoseológico que admite só opiniões sem qualquer referência à sua conformidade à realidade e à verdade. Trata-se de uma postura de desconfiança nos confrontos da verdade: «Se o homem nega a sua fundamental capacidade da verdade, se se torna céptico sobre a sua faculdade de conhecer realmente aquilo que é verdadeiro, ele acaba por perder aquilo que de um modo único pode abarcar a sua inteligência e fascinar o seu coração»48. O respeito pela liberdade religiosa dos outros não pode significar indiferença para com a verdade e o bem.

 Um segundo aspecto do diálogo diz respeito à procura da verdade como dever não só das forças de cada interlocutor, mas como reconhecimento da experiência dos outros: Em particular, a verdade que é capaz de iluminar o sentido da própria vida e de a guiar é alcançada também mediante o abandono confiante àqueles que possam garantir a certeza e a autenticidade da própria verdade.O cristão que acolhe na fé a revelação divina participa deste dinamismo de procura da verdade mas também de anúncio e de comunicação desta verdade salvífica aos outros. A solicitação, mediante o diálogo da verdade, da inteligência e da liberdade do interlocutor ao encontro com Cristo e com a sua palavra não constitui uma intrusão ilícita, mas uma legítima oferta e um gratuito serviço ao próximo, sempre tendo presente a máxima conciliar que a verdade «não se impõe senão por força da mesma verdade.

 Em terceiro lugar, o diálogo inter-religioso mediante a comunicação das verdades religiosas da fé cristã não só em sintonia com a natureza dialogante de cada ser humano, mas responde a uma outra significativa realidade antropológica, a de mostrar os outros os próprios bens e de os tornar participes. Ora a verdade salvífica leva a liberdade e a generosidade dos fiéis a retribuir ao próximo quanto gratuitamente se recebeu. A vontade salvífica universal de Deus é um dado bíblico inegável e a graça de Deus conhece caminhos misteriosos para alcançar dos não cristãos. Mas a Igreja não pode não ter em conta o fato de que a esses falta um grandíssimo bem neste mundo: conhecer o verdadeiro rosto de Deus e a amizade com Jesus Cristo, o Deus conosco. De fato, “não há nada mais belo que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com Ele”».51 O conhecimento da verdade sobre Deus, sobre o destino do homem e do cosmos, é um bem que sustenta a existência de cada ser humano. É como um êxodo da obscuridade da ignorância à luz da verdade. O conhecimento da verdade salvífica não humilha a liberdade humana, mas exalta-a conduzindo-a para o cumprimento das suas aspirações à felicidade. Trata-se de um bem que a Igreja quer tornar todos participantes na liberdade e no respeito absoluto da consciência dos outros.

Além disso, o movente do diálogo inter-religioso é fazer conhecer o amor de Cristo pela salvação da humanidade inteira. O diálogo não pode substituir o anúncio. Por isto o diálogo é atuado na verdade, na liberdade, na amizade e no respeito das razões e dos sentimentos dos outros. Não se pode não acenar a um perigo, a partir do momento que também no diálogo pode entrar o pecado: «Pode acontecer algumas vezes que tal diálogo não seja guiado pelo seu natural fim, mas ceda ao engano, a interesses egoístas ou à arrogância, faltando assim de respeito à dignidade e à liberdade religiosa dos interlocutores. Por isso «a Igreja proíbe severamente de constringir ou de induzir e atrair quem quer que seja com inoportunos enganos para abraçar a fé, do mesmo modo que reivindica energicamente o direito de que ninguém com injustas perseguições seja afastado da própria fé».52 A gratuidade e o testemunho até ao martírio manifestam a sinceridade e a veracidade do interlocutor cristão. Por outra parte também o interlocutor não cristão, não pode entender o diálogo como um instrumento para paralisar ou impedir o anúncio cristão.

Ainda, no diálogo da verdade importa que os dois interlocutores tenham um profundo conhecimento recíproco. Ora, se ajuda conhecer o interlocutor cristão, que alude a um magistério único que assegura com autoridade a ortodoxia e a ortopráxis cristã (é suficiente ler o Catecismo da Igreja Católica ou o seu Compêndio), o mesmo não se pode dizer para o partner não cristão. A ausência de um único magistério autorizado, a multiplicidade de formas de interpretações, por exemplo, do hinduísmo, do budismo, do islão ou das chamadas religiões tradicionais, tornam ainda mais difícil se não impossível colher a especificidade das suas convicções de fé.

Em conclusão, da parte cristã os ingredientes essenciais para um correto diálogo inter-religioso sãos os quatros princípios da verdade, da liberdade, da caridade e do respeito recíproco. Sobre esta base, se o diálogo ecuménico pudesse conduzir à unidade de todos os batizados na única Igreja, o diálogo inter-religioso tem uma outra finalidade, a do conhecimento e do acolhimento recíprocos. Não se trata de chegar a um compromisso, nem de iniciar uma diligência diplomática. Trata-se de manter um correto comportamento de proximidade dialogante, que deixe a graça de Deus difundir-se nos corações e nas mentes da humanidade inteira.


9. Conclusão

Concluamos com uma chamada à exortação de São Paulo, que convida os Efésios a serem verdadeiros na caridade(Ef 4,15).53 A tradução latina diz "veritatem autem facientes in caritate" e a italiana "vivendo segundo a verdade na caridade". Trata-se na realidade de uma comunicação veraz que  é ao mesmo tempo manifestação concreta da verdade nas palavras, na vida e nas obras. Com isso São Paulo – comenta Heinrich Schlier – convida os fiéis a evitar a incerteza e a confusão de uma fé insegura perante as ideias brilhantes e constritivas do tempo. 

O anúncio da verdade evangélica e a proclamação do mistério salvífico de Cristo, feito com sinceridade e coragem, devem ser sempre ancorados na caridade. É a caridade a casa da verdade e vice-versa, dado que Deus é Caridade e Verdade.

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