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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 17/05/2024

17 de Maio de 2024

A riqueza do coração

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17 de Maio de 2024

A riqueza do coração

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06/11/2015 19:26 - Atualizado em 06/11/2015 19:27

A riqueza do coração 0

06/11/2015 19:26 - Atualizado em 06/11/2015 19:27

1ª Leitura: 1Rs 17, 10-16

Sl 145

2ª Leitura: Hb 9,24-28

Evangelho: Mc 12,38-44

 

“...da sua pobreza, ela deu tudo que tinha”

 

“Lançai, ó Deus, sobre o nosso sacrifício um olhar de perdão e de paz, para que, celebrando a paixão do vosso Filho, possamos viver o seu mistério.” Esse é o desejo cristão: viver o mistério de Deus. O Mistério de Deus que vem ao nosso encontro na força da sua Palavra e na Páscoa Redentora do seu Filho é insondável. Diante do mistério de Deus sentimos uma santa vertigem, porque não conseguimos abraçar tudo o que Ele é. Mas hoje, neste dia festivo e solene, no “dia que o Senhor fez para nós”, no qual devemos “nos alegrar e exultar”, se abre para nós na celebração eucarística o véu do mistério. Deus nos permite entrever a profundidade do seu desígnio de salvação, plenamente revelado no seu Filho, mas ainda sendo a cada dia compreendido com mais exatidão pela Igreja.

Hoje nós nos reunimos em torno dessas duas mesas, para nelas sermos saciados de pão. O pão da Palavra e o pão que é o Corpo do Senhor. Deus infunda em nós o seu Espírito, para dar-nos sentidos espirituais. Um ouvido espiritual, capaz de discernir a voz de Deus que nos fala na sua Palavra; um paladar espiritual, capaz de sentir o gosto do céu, no Corpo e Sangue do seu Filho que tocam os nossos lábios.

A Palavra de Deus nos apresenta hoje, tanto na primeira leitura quanto no evangelho, o tema da pobreza espiritual. A primeira leitura nos apresenta um binômio. Temos na perícope que acabamos de ouvir a imagem da viúva de Sarepta, na Sidônia. Essa viúva está em completa penúria. A causa de sua penúria é a seca, mas a seca é fruto do pecado de Acab, que se casou com Jezabel, uma pagã que trouxe para Israel toda sorte de práticas estranhas à fé no Deus único. Jezabel corrompeu o coração de Acab, construiu altares pagãos e trouxe para macular a terra prometida os seus falsos profetas, que contaminaram o povo com toda sorte de práticas e de palavras que não eram as práticas nem as palavras do Eterno. Temos diante dos olhos a soberba Jezabel, que persegue o profeta Elias, imagem da desobediência, a mulher que não escuta a Palavra. De outro lado, temos a viúva, que acolhe a palavra do profeta, a mulher que, na sua pobreza, sabe ouvir a voz de Deus.

O Evangelho também nos apresenta um binômio. De um lado temos os hipócritas e soberbos doutores da Lei. Estes não ouvem a Deus e não o procuram. Na verdade, estão à procura de si mesmos e Jesus deixa isso bem claro ao afirmar que o que eles gostam é de ser cumprimentados pelas ruas, de receber o título de mestres e ter os melhores lugares nos banquetes. De outro lado, a pobre viúva, que chama a atenção de Jesus porque dá tudo o que possui. Ela só está interessada em Deus. Não pensa em si, a ponto de dar tudo o que tinha para viver. Não é como os doutores da Lei, que trombeteam à frente de si mesmos as obras que realizam. Tampouco, ela é como os ricos, que lançam muitas moedas nos gazofiláceos. Ela dá duas pequenas moedinhas, duas leptas. Mas, o que impressiona Jesus é a capacidade que essa mulher tem de dar tudo o que possuía para viver.

Devemos ter um olhar espiritual para perceber o que a Escritura nos mostra. Escondido na viúva de Sarepta está cada um de nós. Quantas vezes também não temos mais o que oferecer. Olhamos para a nossa vida e ela nos parece um punhado de farinha e um pouco de azeite. Esperamos nos alimentar disso e esperar a morte. Mas, quando damos a Deus tudo o que possuímos, quando abrimos as nossas mãos na fé e oferecemos a Deus até aquilo o que nos parece necessário para sobreviver, Ele vem e nos mostra que é Ele quem cuida da nossa vida, que Ele tem poder de não deixar a nossa farinha diminuir, nem nosso azeite secar. Aqui eu penso não somente no dinheiro. Penso naquelas situações às quais nos agarramos como se fossem elas a nos manter na existência. O pecado nos faz pensar assim. Achamos que se abrirmos mão disso ou daquilo vamos perder a vida. Na verdade estamos vivendo de um alimento que não é capaz de nos dar a vida. Às vezes a dificuldade em nos convertermos está no fato de que achamos que se largarmos esta ou aquela situação, vamos morrer, porque aquilo é tudo o que temos para viver. Meus irmãos, Deus não permitirá que diminua nosso azeite e nem que seque a nossa farinha. Se a viúva ficasse apegada ao que tinha para viver, de fato teria morrido, ela e seu filho. Mas, porque foi atenta à palavra do profeta, recebeu de Deus o milagre da multiplicação daqueles bens que garantiam a sua vida. É Deus que nos mantém na existência. As pessoas e as coisas nos ajudam a viver na medida em que são expressão dessa presença de Deus na nossa vida. Do contrário, elas se tornam ídolos, que parecem nos manter na vida, mas que de fato sugam a nossa vida, como fizeram os ídolos de Jezabel. A palavra de Deus hoje nos convida a ouvirmos a voz de Deus. Não podemos agir como a soberba Jezabel, que quis viver dos seus falsos ídolos. Precisamos ouvir a voz de Deus e saber que é Ele quem cuida da nossa vida.

O Evangelho também nos apresenta duas atitudes espirituais distintas. De um lado temos os doutores da Lei. São gente versada nas Escrituras, mas transformaram as coisas mais santas em ídolos. Não procuram conhecer as Escrituras porque estas os levam a Deus, mas querem conhecer a Escritura para poderem ser chamados de Rabi, para levarem vantagens até mesmo financeira sobre as pessoas. São a imagem do abuso espiritual. São pessoas que precisam de purificação. Também nós podemos ter essa atitude diante de Deus. Corremos o risco de buscarmos não a Deus como Ele é, mas o Deus das nossas projeções. Podemos estar procurando as coisas de Deus com muita avidez, mas não para chegarmos a Ele, mas somente para podermos dizer diante das pessoas o quanto já conhecemos de Deus e o quanto já lemos sobre Ele. Assim eram também aqueles que lançavam grandes ofertas no tesouro do Templo. Muitos queriam demonstrar como suas ofertas faziam barulho no gazofilácio do Templo. Grandes moedas que rolavam pelas shofarot[1] caindo direto na sala do Tesouro. Muitos estivessem, talvez, fazendo doações sinceras, mas também muitos podiam se aproveitar da situação para chamar a atenção para sua “generosidade”.

A viúva chama a atenção de Jesus. Ela coloca no tesouro do Templo duas leptas. A lepta era uma moeda hebraica de valor ínfimo. Marcos chega a explicar para os seus ouvintes pagãos que se tratava da pequena moeda romana chamada de quadrante. Essa viúva, ainda que quisesse se orgulhar de alguma coisa, não havia de que se orgulhar. A palavra do evangelho diz que ela “da sua esterilidade (pobreza, penúria) deu tudo o que tinha para a sua vida”. A viúva da primeira leitura deu sua pequena porção de farinha e azeite. A viúva do evangelho oferece “da sua esterilidade”. O que alguém pode oferecer a partir da própria esterilidade? A esterilidade aqui não está ligada à geração de filhos. Aqui é o tema da esterilidade de recursos. A viúva, frágil já pelo simples fato de ser viúva, não tem nada com que manter a própria vida e tudo o que possuía, uma quantia irrisória, inútil, ela lança no tesouro do Templo. Jesus fala que ela deu mais que todos os que lançaram as maiores quantias.

O mistério dessa Palavra não está ligado ao dado financeiro. Jesus vê nas duas leptas a própria vida da viúva. A grandeza dessa mulher está no fato dela ter dado tudo o que tinha, em outras palavras, ela ofereceu a si mesma. Quando se dá tudo o que se possui para viver isso significa que eu estou abrindo mão daquilo em que eu colocava a minha confiança e acreditando cegamente, contra toda esperança, que o novo está para irromper, e que a minha vida há de ser sustentada, agora não mais por uma quantia de morte, mas por uma riqueza infinita que há de se manifestar.

Os que lançaram muitas moedas achavam-se quites com Deus. Pensavam que, dando grandes quantias, Deus ficaria satisfeito e os recompensaria. Mas, se aquela quantia não era um sacramento da própria vida oferecida e completamente doada, isso não adiantava nada. Davam grandes quantias, mas voltavam para casa vazios. A viúva sabia não poder enriquecer o tesouro do Templo com suas duas moedinhas, mas oferecendo-se misteriosamente naquelas duas moedinhas ela saiu enriquecida, pois foi Deus quem lançou suas maiores riquezas no gazofiláceo do seu coração. E as moedas de Deus são das grandes. O nosso coração deve ter largas shofarot para receber as grandes moedas de Deus que preenchem o nosso tesouro como nenhuma moeda humana é capaz de preencher. Só quando descobrimos esse tesouro infinito é que somos capazes de também receber as moedas humanas - o amor dos homens - como uma riqueza não idolátrica.

Essas imagens de duas viúvas que dão tudo o que possuem, e que esse tudo na verdade simboliza a doação de si mesmas, são para nós imagens sacramentais de que como deve ser a nossa entrega a Deus. Também nós devemos nos dar completos a Deus. Não se trata de oferecer algo, mas de oferecer a nós mesmos. Cristo não nos deu algo, mas nos deu a si mesmo. A segunda leitura nos afirma que Cristo foi “oferecido uma vez por todas”. Cristo não entrou no santuário com o sangue de animais, mas o seu próprio sangue que Ele derramou todo, por nossa salvação. Também nós não podemos nos contentar de dar a Deus algo. Precisamos dar a Deus tudo, a nossa vida, o que nós somos. A doação do dízimo, ou de algum bem, só serve a Deus se for expressão dessa doação total e completa que fazemos de nós mesmos a Deus. Não tenhamos medo de morrer. Deus é quem nos garante a vida. Não são as duas moedinhas; não é um punhado de farinha e um pouco de azeite que é capaz de nos manter a vida; só Cristo nos dá a vida verdadeira, porque Ele é a Vida.

Para mim, a viúva é também imagem da alma caída no pecado. Quando o homem experimenta o pecado ele coloca diante de si um véu, que o torna incapaz de perceber que só Deus pode sustentar-lhe a vida. Ele, então, na sua ânsia por vida, precisa se apegar a alguma coisa. O homem cria para si ídolos. Idolatra o sexo, todos os tipos de prazer, as pessoas, enfim, tudo o que Deus criou, que é bom, mas que não pode ser tomado como fonte de Vida, porque são realidades que emanam da única fonte da Vida que é Deus. O homem vira as costas para Deus e olha para os bens criados. Os idolatra. Adora as coisas criadas por Deus como se fossem deuses. A conseqüência só pode ser a morte. O próprio homem vai percebendo com o tempo, que aquilo o que antes ele achava que era capaz de sustentar a sua vida, foi se tornando aos poucos a expressão da morte, como um pote de farinha que vai se esvaziando, como um odre de azeite que vai secando, ou como uma bolsa de dinheiro que aos pouco se transforma em duas leptas. Podemos morrer abraçados em nossos pecados, em nossas idolatrias, achando que ali está a fonte da vida. Ou, podemos fazer como a viúva de Sarepta que ouviu a voz do profeta, ou como essa misteriosa viúva do Evangelho, que ouviu a voz de Cristo que falava em seu interior. Podemos deixar as coisas às quais idolatramos e nos voltar para o Deus digno de toda adoração e fonte da vida. Ele sim é a fonte da vida. Ele não se esgota. Esse é o seu Mistério! E Ele nos fará retornar aos bens criados, mas não procurando neles a fonte da Vida, mas usufruindo deles como Dom da Única Fonte.

A Eucaristia nos esclarece o Mistério da doação total. Deus em sua kénosis se faz Palavra. A Palavra se encarna. Deus se faz homem para que o homem seja divinizado. Deus não nos deu algo, senão Ele seria muito bem representado pelos ricos que lançam grandes moedas. Deus nos deu a si mesmo. Na Eucaristia experimentamos esse mistério, nos alimentamos desse Mistério. Quando ouvimos a sua Palavra ele está se dando a nós. Quando nos alimentamos do seu Corpo e do seu Sangue, a sua vida penetra em nós. Iluminados por este mistério ofereçamos com alegria a nossa vida diante do altar do Senhor. Como nos diz o salmista é Ele quem “abre os olhos ao cego”, é Ele quem faz “erguer-se o caído”. Ele nos ergueu do pecado à graça, da morte à Vida. Ele abriu os nossos olhos. Olhemos a clareza que a sua Palavra nos traz e iluminados por esta luz sigamos a caminho da Jerusalém Celeste, onde o nosso pranto será transformado em dança e o “nosso construtor nos desposará”[2] tirando-nos de nossa viuvez!



[1] Shofarot é plural de Shofar, que quer dizer, dentre outras coisas, “corneta”. Eram as saídas em número de 13 que haviam ligando a sala do tesouro do Templo à superfície. As pessoas lançavam os seus donativos nos shofarot e estes caiam direto no Tesouro Sagrado.

[2] Cf. Is 62,5

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A riqueza do coração

06/11/2015 19:26 - Atualizado em 06/11/2015 19:27

1ª Leitura: 1Rs 17, 10-16

Sl 145

2ª Leitura: Hb 9,24-28

Evangelho: Mc 12,38-44

 

“...da sua pobreza, ela deu tudo que tinha”

 

“Lançai, ó Deus, sobre o nosso sacrifício um olhar de perdão e de paz, para que, celebrando a paixão do vosso Filho, possamos viver o seu mistério.” Esse é o desejo cristão: viver o mistério de Deus. O Mistério de Deus que vem ao nosso encontro na força da sua Palavra e na Páscoa Redentora do seu Filho é insondável. Diante do mistério de Deus sentimos uma santa vertigem, porque não conseguimos abraçar tudo o que Ele é. Mas hoje, neste dia festivo e solene, no “dia que o Senhor fez para nós”, no qual devemos “nos alegrar e exultar”, se abre para nós na celebração eucarística o véu do mistério. Deus nos permite entrever a profundidade do seu desígnio de salvação, plenamente revelado no seu Filho, mas ainda sendo a cada dia compreendido com mais exatidão pela Igreja.

Hoje nós nos reunimos em torno dessas duas mesas, para nelas sermos saciados de pão. O pão da Palavra e o pão que é o Corpo do Senhor. Deus infunda em nós o seu Espírito, para dar-nos sentidos espirituais. Um ouvido espiritual, capaz de discernir a voz de Deus que nos fala na sua Palavra; um paladar espiritual, capaz de sentir o gosto do céu, no Corpo e Sangue do seu Filho que tocam os nossos lábios.

A Palavra de Deus nos apresenta hoje, tanto na primeira leitura quanto no evangelho, o tema da pobreza espiritual. A primeira leitura nos apresenta um binômio. Temos na perícope que acabamos de ouvir a imagem da viúva de Sarepta, na Sidônia. Essa viúva está em completa penúria. A causa de sua penúria é a seca, mas a seca é fruto do pecado de Acab, que se casou com Jezabel, uma pagã que trouxe para Israel toda sorte de práticas estranhas à fé no Deus único. Jezabel corrompeu o coração de Acab, construiu altares pagãos e trouxe para macular a terra prometida os seus falsos profetas, que contaminaram o povo com toda sorte de práticas e de palavras que não eram as práticas nem as palavras do Eterno. Temos diante dos olhos a soberba Jezabel, que persegue o profeta Elias, imagem da desobediência, a mulher que não escuta a Palavra. De outro lado, temos a viúva, que acolhe a palavra do profeta, a mulher que, na sua pobreza, sabe ouvir a voz de Deus.

O Evangelho também nos apresenta um binômio. De um lado temos os hipócritas e soberbos doutores da Lei. Estes não ouvem a Deus e não o procuram. Na verdade, estão à procura de si mesmos e Jesus deixa isso bem claro ao afirmar que o que eles gostam é de ser cumprimentados pelas ruas, de receber o título de mestres e ter os melhores lugares nos banquetes. De outro lado, a pobre viúva, que chama a atenção de Jesus porque dá tudo o que possui. Ela só está interessada em Deus. Não pensa em si, a ponto de dar tudo o que tinha para viver. Não é como os doutores da Lei, que trombeteam à frente de si mesmos as obras que realizam. Tampouco, ela é como os ricos, que lançam muitas moedas nos gazofiláceos. Ela dá duas pequenas moedinhas, duas leptas. Mas, o que impressiona Jesus é a capacidade que essa mulher tem de dar tudo o que possuía para viver.

Devemos ter um olhar espiritual para perceber o que a Escritura nos mostra. Escondido na viúva de Sarepta está cada um de nós. Quantas vezes também não temos mais o que oferecer. Olhamos para a nossa vida e ela nos parece um punhado de farinha e um pouco de azeite. Esperamos nos alimentar disso e esperar a morte. Mas, quando damos a Deus tudo o que possuímos, quando abrimos as nossas mãos na fé e oferecemos a Deus até aquilo o que nos parece necessário para sobreviver, Ele vem e nos mostra que é Ele quem cuida da nossa vida, que Ele tem poder de não deixar a nossa farinha diminuir, nem nosso azeite secar. Aqui eu penso não somente no dinheiro. Penso naquelas situações às quais nos agarramos como se fossem elas a nos manter na existência. O pecado nos faz pensar assim. Achamos que se abrirmos mão disso ou daquilo vamos perder a vida. Na verdade estamos vivendo de um alimento que não é capaz de nos dar a vida. Às vezes a dificuldade em nos convertermos está no fato de que achamos que se largarmos esta ou aquela situação, vamos morrer, porque aquilo é tudo o que temos para viver. Meus irmãos, Deus não permitirá que diminua nosso azeite e nem que seque a nossa farinha. Se a viúva ficasse apegada ao que tinha para viver, de fato teria morrido, ela e seu filho. Mas, porque foi atenta à palavra do profeta, recebeu de Deus o milagre da multiplicação daqueles bens que garantiam a sua vida. É Deus que nos mantém na existência. As pessoas e as coisas nos ajudam a viver na medida em que são expressão dessa presença de Deus na nossa vida. Do contrário, elas se tornam ídolos, que parecem nos manter na vida, mas que de fato sugam a nossa vida, como fizeram os ídolos de Jezabel. A palavra de Deus hoje nos convida a ouvirmos a voz de Deus. Não podemos agir como a soberba Jezabel, que quis viver dos seus falsos ídolos. Precisamos ouvir a voz de Deus e saber que é Ele quem cuida da nossa vida.

O Evangelho também nos apresenta duas atitudes espirituais distintas. De um lado temos os doutores da Lei. São gente versada nas Escrituras, mas transformaram as coisas mais santas em ídolos. Não procuram conhecer as Escrituras porque estas os levam a Deus, mas querem conhecer a Escritura para poderem ser chamados de Rabi, para levarem vantagens até mesmo financeira sobre as pessoas. São a imagem do abuso espiritual. São pessoas que precisam de purificação. Também nós podemos ter essa atitude diante de Deus. Corremos o risco de buscarmos não a Deus como Ele é, mas o Deus das nossas projeções. Podemos estar procurando as coisas de Deus com muita avidez, mas não para chegarmos a Ele, mas somente para podermos dizer diante das pessoas o quanto já conhecemos de Deus e o quanto já lemos sobre Ele. Assim eram também aqueles que lançavam grandes ofertas no tesouro do Templo. Muitos queriam demonstrar como suas ofertas faziam barulho no gazofilácio do Templo. Grandes moedas que rolavam pelas shofarot[1] caindo direto na sala do Tesouro. Muitos estivessem, talvez, fazendo doações sinceras, mas também muitos podiam se aproveitar da situação para chamar a atenção para sua “generosidade”.

A viúva chama a atenção de Jesus. Ela coloca no tesouro do Templo duas leptas. A lepta era uma moeda hebraica de valor ínfimo. Marcos chega a explicar para os seus ouvintes pagãos que se tratava da pequena moeda romana chamada de quadrante. Essa viúva, ainda que quisesse se orgulhar de alguma coisa, não havia de que se orgulhar. A palavra do evangelho diz que ela “da sua esterilidade (pobreza, penúria) deu tudo o que tinha para a sua vida”. A viúva da primeira leitura deu sua pequena porção de farinha e azeite. A viúva do evangelho oferece “da sua esterilidade”. O que alguém pode oferecer a partir da própria esterilidade? A esterilidade aqui não está ligada à geração de filhos. Aqui é o tema da esterilidade de recursos. A viúva, frágil já pelo simples fato de ser viúva, não tem nada com que manter a própria vida e tudo o que possuía, uma quantia irrisória, inútil, ela lança no tesouro do Templo. Jesus fala que ela deu mais que todos os que lançaram as maiores quantias.

O mistério dessa Palavra não está ligado ao dado financeiro. Jesus vê nas duas leptas a própria vida da viúva. A grandeza dessa mulher está no fato dela ter dado tudo o que tinha, em outras palavras, ela ofereceu a si mesma. Quando se dá tudo o que se possui para viver isso significa que eu estou abrindo mão daquilo em que eu colocava a minha confiança e acreditando cegamente, contra toda esperança, que o novo está para irromper, e que a minha vida há de ser sustentada, agora não mais por uma quantia de morte, mas por uma riqueza infinita que há de se manifestar.

Os que lançaram muitas moedas achavam-se quites com Deus. Pensavam que, dando grandes quantias, Deus ficaria satisfeito e os recompensaria. Mas, se aquela quantia não era um sacramento da própria vida oferecida e completamente doada, isso não adiantava nada. Davam grandes quantias, mas voltavam para casa vazios. A viúva sabia não poder enriquecer o tesouro do Templo com suas duas moedinhas, mas oferecendo-se misteriosamente naquelas duas moedinhas ela saiu enriquecida, pois foi Deus quem lançou suas maiores riquezas no gazofiláceo do seu coração. E as moedas de Deus são das grandes. O nosso coração deve ter largas shofarot para receber as grandes moedas de Deus que preenchem o nosso tesouro como nenhuma moeda humana é capaz de preencher. Só quando descobrimos esse tesouro infinito é que somos capazes de também receber as moedas humanas - o amor dos homens - como uma riqueza não idolátrica.

Essas imagens de duas viúvas que dão tudo o que possuem, e que esse tudo na verdade simboliza a doação de si mesmas, são para nós imagens sacramentais de que como deve ser a nossa entrega a Deus. Também nós devemos nos dar completos a Deus. Não se trata de oferecer algo, mas de oferecer a nós mesmos. Cristo não nos deu algo, mas nos deu a si mesmo. A segunda leitura nos afirma que Cristo foi “oferecido uma vez por todas”. Cristo não entrou no santuário com o sangue de animais, mas o seu próprio sangue que Ele derramou todo, por nossa salvação. Também nós não podemos nos contentar de dar a Deus algo. Precisamos dar a Deus tudo, a nossa vida, o que nós somos. A doação do dízimo, ou de algum bem, só serve a Deus se for expressão dessa doação total e completa que fazemos de nós mesmos a Deus. Não tenhamos medo de morrer. Deus é quem nos garante a vida. Não são as duas moedinhas; não é um punhado de farinha e um pouco de azeite que é capaz de nos manter a vida; só Cristo nos dá a vida verdadeira, porque Ele é a Vida.

Para mim, a viúva é também imagem da alma caída no pecado. Quando o homem experimenta o pecado ele coloca diante de si um véu, que o torna incapaz de perceber que só Deus pode sustentar-lhe a vida. Ele, então, na sua ânsia por vida, precisa se apegar a alguma coisa. O homem cria para si ídolos. Idolatra o sexo, todos os tipos de prazer, as pessoas, enfim, tudo o que Deus criou, que é bom, mas que não pode ser tomado como fonte de Vida, porque são realidades que emanam da única fonte da Vida que é Deus. O homem vira as costas para Deus e olha para os bens criados. Os idolatra. Adora as coisas criadas por Deus como se fossem deuses. A conseqüência só pode ser a morte. O próprio homem vai percebendo com o tempo, que aquilo o que antes ele achava que era capaz de sustentar a sua vida, foi se tornando aos poucos a expressão da morte, como um pote de farinha que vai se esvaziando, como um odre de azeite que vai secando, ou como uma bolsa de dinheiro que aos pouco se transforma em duas leptas. Podemos morrer abraçados em nossos pecados, em nossas idolatrias, achando que ali está a fonte da vida. Ou, podemos fazer como a viúva de Sarepta que ouviu a voz do profeta, ou como essa misteriosa viúva do Evangelho, que ouviu a voz de Cristo que falava em seu interior. Podemos deixar as coisas às quais idolatramos e nos voltar para o Deus digno de toda adoração e fonte da vida. Ele sim é a fonte da vida. Ele não se esgota. Esse é o seu Mistério! E Ele nos fará retornar aos bens criados, mas não procurando neles a fonte da Vida, mas usufruindo deles como Dom da Única Fonte.

A Eucaristia nos esclarece o Mistério da doação total. Deus em sua kénosis se faz Palavra. A Palavra se encarna. Deus se faz homem para que o homem seja divinizado. Deus não nos deu algo, senão Ele seria muito bem representado pelos ricos que lançam grandes moedas. Deus nos deu a si mesmo. Na Eucaristia experimentamos esse mistério, nos alimentamos desse Mistério. Quando ouvimos a sua Palavra ele está se dando a nós. Quando nos alimentamos do seu Corpo e do seu Sangue, a sua vida penetra em nós. Iluminados por este mistério ofereçamos com alegria a nossa vida diante do altar do Senhor. Como nos diz o salmista é Ele quem “abre os olhos ao cego”, é Ele quem faz “erguer-se o caído”. Ele nos ergueu do pecado à graça, da morte à Vida. Ele abriu os nossos olhos. Olhemos a clareza que a sua Palavra nos traz e iluminados por esta luz sigamos a caminho da Jerusalém Celeste, onde o nosso pranto será transformado em dança e o “nosso construtor nos desposará”[2] tirando-nos de nossa viuvez!



[1] Shofarot é plural de Shofar, que quer dizer, dentre outras coisas, “corneta”. Eram as saídas em número de 13 que haviam ligando a sala do tesouro do Templo à superfície. As pessoas lançavam os seus donativos nos shofarot e estes caiam direto no Tesouro Sagrado.

[2] Cf. Is 62,5

Padre Fábio Siqueira
Autor

Padre Fábio Siqueira

Vice-diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida