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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 17/05/2024

17 de Maio de 2024

Uma só carne

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04/10/2015 13:51 - Atualizado em 04/10/2015 13:52

Uma só carne 0

04/10/2015 13:51 - Atualizado em 04/10/2015 13:52

Hoje Jesus nos faz uma catequese sobre o matrimônio e a família, sobre o lugar do homem e da mulher na economia da salvação. O texto do Evangelho se situa na viagem de Jesus em direção à Judeia. Enquanto Jesus ensinava às multidões, os fariseus se aproximaram d’Ele para pô-lo à prova. É proposta, então, a Jesus a questão a respeito da liceidade do divórcio. Os fariseus, desejosos de testar Jesus, perguntam se é lícito ou não ao marido repudiar a esposa.

De fato, era uma pergunta capciosa, feita simplesmente com a intenção destrutiva de testar Jesus. Os fariseus já conheciam bem o texto de Deuteronômio 24, que permitia ao homem despedir a sua esposa caso essa não encontrasse mais encanto aos seus olhos. Todavia, os fariseus querem pôr Jesus à prova, querem testá-Lo, querem ver se Ele se coloca contra a Torá, para terem, assim, um motivo para acusá-Lo. Todavia, Jesus não teme ser testado, porque Ele é a Palavra encarnada. Querendo testar Jesus os fariseus é que são testados com relação ao seu conhecimento da Torá.

De fato, parece que algumas vezes os fariseus só conhecem da Torá aquilo o que lhes é conveniente. Jesus, então, se revela como o verdadeiro fariseu, agora no sentido verdadeiro e puro do termo, como aquele homem zeloso da lei, que a conhece e a aplica na sua integridade e não segundo interesses escusos. Jesus pergunta aos fariseus o que diz Moisés, o que Moisés “mandou” fazer. Os fariseus remetem ao Deuteronômio 24, e afirmam que Moisés “permitiu” que se repudiasse a mulher. Interessante o jogo de palavras de Marcos: Jesus pergunta o que Moisés “mandou” e os fariseus respondem dizendo o que Moisés “permitiu”. Moisés, de fato, não “mandou”, mas “permitiu” que o homem desse à mulher um documento de divórcio por causa da sua esklerokardia, por causa da sua “dureza de coração”.

O tema da dureza de coração, da esklerokardia, aparece também nos profetas, como podemos ver em Jr 18,11-12: “E agora dize aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém: ‘Assim disse Adonai. Eis que eu preparo contra vós uma desgraça e formulo contra vós um plano. Converta-se, pois, cada um de seu caminho perverso, melhorai vossos caminhos e vossa obras.’ Mas ele dirão: ‘É inútil! Nós seguiremos nossos planos; cada um de nós agirá conforme a obstinação (dureza) do seu coração malvado.’ ” Também nos salmos Deus se lamenta por causa da esklerokardia do seu povo: Sl 81,12-13: “E meu povo não ouviu minha voz, Israel não quis obedecer-me; então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos!” O homem é entregue aos seus próprios caminhos por causa da sua dureza de coração. A esclerose do coração é mais daninha que a esclerose do corpo, porque ela torna o coração impermeável à Palavra de Deus e à novidade do Espírito. Por isso que é preciso receber o Reino de Deus com um coração de criança, não esclerosado, não enrijecido, como Jesus afirma no final dessa perícope.

Deus não pensou e nem desejou o divórcio. Esta foi uma decisão do homem Moisés em virtude da dureza de coração do povo. Mas, afirma Jesus, “no princípio”, no “gênesis”, no projeto original de Deus não foi assim. Jesus explica a Torá pela própria Torá! A Torá não se contradiz, pois o projeto original de Deus está lá manifestado, intacto, relatado no texto do Gênesis ao qual Jesus se refere. Todavia, na experiência da dureza de coração do povo Moisés lhes dá um preceito, transitório, que durará até que seus corações sejam dilatados para entender a Torá na sua integridade e não segundo os seus interesses.

Jesus retoma o texto do Gênesis 1,27 e 2,24 para afirmar que desde o princípio da criação “ele os fez homem e mulher, e os dois serão uma só carne.” E aqui se coloca a revelação de Deus sobre a verdade a respeito do homem e da mulher e, consequentemente, do matrimônio. Deus os fez “homem e mulher”. A nossa sexualidade é um elemento da nossa identidade. Somos caracterizados pelo ser homem ou mulher desde a nossa concepção. Ninguém decide ser homem ou mulher. Nascemos assim. A nossa masculinidade ou a nossa feminilidade é um dom, uma graça, que deve ser recebida com gratidão. Todo aquele que despreza o seu ser masculino ou feminino despreza um precioso dom de Deus.

Na sociedade atual, se quer apregoar que não temos sexo, mas temos gênero, e decidimos a que gênero queremos pertencer. Isso é loucura! Ser homem ou mulher não é fruto de uma decisão, mas é uma característica que trazemos desde o ventre materno e que deve ser recebida com gratidão, pela própria pessoa e por seus pais também. A pessoa que encontra alguma dificuldade no trato com a sua própria sexualidade deve ser amada e amparada, mas se deve conduzir esta pessoa a encontrar a verdade a respeito de si mesma. Amar as pessoas não significa deixar que elas sigam qualquer vento de doutrina, mas significa conduzi-las para a luz, para a verdade sobre si mesmas. A mesma sociedade que quer matar a família, quer destruir a verdade sobre a sexualidade do homem e da mulher.

Pois bem, assim sendo continuamos nosso caminho na primeira leitura, à qual o Evangelho nos remete. Vendo Deus que não era bom para o homem estar só, Deus resolve dar-lhe uma auxiliar “que lhe corresponda”. Deus fez com que todos os animais fossem nomeados por Adão, para que este percebesse o seu senhorio, o seu domínio sobre as coisas criadas.

Depois de dar nome a todos os animais Adão percebe que não existe entre eles alguém que lhe corresponda. Deus, então, faz cair um sono sobre Adão, uma espécie de êxtase, para que ele não veja a obra portentosa de Deus: a criação da mulher. O autor do Gênesis descreve então, de forma simbólica, mas rica em conteúdo teológico, a criação da mulher. Deus retira uma costela de Adão e a partir dela faz a mulher.

Deus conduz a mulher até Adão e este exclama numa ação profética: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem.” E, por isso, o homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua mulher e os dois serão uma só carne.

Várias ideias teológicas estão presentes neste texto do Gênesis. A primeira é a igualdade de condições entre o homem e a mulher: esta foi tirada do seu lado aberto! Ela se chamará mulher (em hebraico îshá) por foi tirada do homem (îsh): mesma raíz gramatical, mesma dignidade entre os dois. A segunda ideia teológica presente no texto é a do casamento monogâmico: Deus cria uma mulher que corresponde ao homem. A terceira mensagem teológica do texto é a da comunhão que deve existir entre o homem e a mulher. O homem reconhece na mulher alguém que lhe corresponde, um outro eu, por isso ele afirma: “esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne”. A mulher é a ajuda adequada para o homem, alguém com quem ele vai dividir a vida. E, por fim, a indissolubilidade do vínculo gerado entre os dois, não como uma lei, mas como um dom.

Aqui não há nenhuma lei, mas porque a mulher é a ajuda correspondente ao homem, é alguém com quem ele decide dividir a vida, é alguém que afasta dele toda a solidão, com quem ele vive em comunhão, porque precisamente para isto Deus o criou, para a comunhão, então a indissolubilidade desse vínculo é um dom.

Este é o projeto de Deus para o matrimônio e a família. Se outras coisas aparecem ainda que nas Escrituras, elas aparecem por causa da dureza do coração do homem, não porque Deus manda, mas porque os homens não querem viver plenamente na reta ordem que Deus estabeleceu para toda a criação, e então Deus permite determinadas atitude até que o homem seja capaz de ter o seu coração dilatado. Vemos que até mesmo o profeta Malaquias critica a postura dos que aceitam o mandato do divórcio: “Vós fazeis, também, outra coisa: cobris de lágrimas o altar de Adonai, com choro e gemidos, porque ele não se inclina mais para a oferenda a fim de recebê-la benignamente de vossas mãos. E perguntais: Por quê? – Porque Adonai é testemunha entre ti e a mulher de tua juventude, que traíste, embora ela seja a tua companheira e a mulher de tua aliança. Ele não fez um único ser, carne e sopro vital? O que procura esse único ser? Uma descendência de Deus! Guardai-vos, pois, no que diz respeito às vossa vidas; não traias a esposa de tua juventude” (Ml 2,13-15). Jesus em casa, conclui toda a questão com seus discípulos afirmando que tanto o homem quanto a mulher que repudiam o seu cônjuge e contraem nova união cometem adultério.

Somos chamados hoje a olhar o matrimônio sob o prisma sacramental. O matrimônio deve ser, para nós cristãos, um sinal visível da união de Cristo com sua Igreja. Se, em âmbito natural, o divórcio não se aplica porque contraria a verdade do matrimônio, destrói aquela família que se formou da livre e espontânea vontade de duas pessoas, mais ainda no âmbito religioso o divórcio se mostra como um grande contra testemunho para o mundo que nos cerca. O matrimônio cristão deve ser um sinal visível da união de Cristo com sua Igreja. Cristo não abandonou a Igreja. Ela, que também nasceu do seu lado aberto na cruz, como a mulher nasceu do lado aberto de Adão que dormia, não foi abandonada em nenhuma hipótese pelo seu esposo.

O amor de Cristo pela sua Igreja durou até a morte, foi um amor até as últimas consequências. Também o amor matrimonial, ainda que se torne, por causa das diferenças, um amor crucificado, é chamado a ser assumido até as suas últimas consequências. Se o matrimônio se tornou uma cruz, ele não deve ser arrastado, mas deve ser oferecido ao Pai como oblação pura. Muitas vezes a convivência matrimonial torna-se impossível, por diversos fatores, até mesmo não queridos por um ou ambos os cônjuges, todavia o vínculo assumido permanece até o fim, e é isso que Jesus nos lembra nesse evangelho. Em Cristo, o matrimônio nunca termina. Isso não deve ser encarado como um peso, como uma lei que mata, mas como um dom, como uma garantia de vitalidade. Cristo concede ao matrimônio a mesma durabilidade que o seu amor pela Igreja. O homem não pode separar aquilo o que Cristo uniu.

O que devemos refletir hoje é sobre a forma como as pessoas se preparam para o matrimônio. Acusa-se a Igreja por dificultar as coisas, por mandar as pessoas ficarem juntas mesmo quando já não se amam. Todavia, o problema não está na Igreja. Não é a Igreja que deve se adaptar à mentalidade do útil e do descartável que anda à solta pelas novelas. A Palavra de Cristo é imutável. A verdade a respeito do homem é imutável.

A Igreja não é dona, mas guardiã dessa verdade. Graças a Deus! Porque não nos falta, mesmo no âmbito intraeclesial, a tentação de querer manipular a verdade a nosso favor, para sermos mais “queridos e populares”. Ainda bem que a verdade de Cristo está acima da Igreja, que ela é depositária e guardiã da fé, assim esta se mantém sempre pura e acessível aos homens. Devemos nos questionar sobre como os jovens se preparam para o matrimônio.

Os nossos jovens cristãos querem amar até a cruz? É a cruz que eles buscam quando pensam no matrimônio? Será que ainda encontramos quem queira doar a própria vida? O que move um jovem cristão para o matrimônio? Este jovem pára e reflete se realmente o outro com quem deseja se unir vive a mesma dimensão de doação e entrega total? Somos nós que precisamos nos converter à Palavra de Deus e não a Palavra de Deus que precisa se converter a nós. Ela é a luz, portanto para ela devemos caminhar. Se não garantirmos a integridade, a indissolubilidade da família, não teremos um bom futuro. O Papa João Paulo II na “Familiaria Consortio” afirma: “O futuro da humanidade passa pela família!” Já experimentamos os frutos de uma sociedade desagredada: ela se torna também desagregadora! A desestruturação da família nos traz inúmeros problemas, destrói os nossos jovens e as nossas crianças, gera pessoas sem esperança e sem estabilidade.

Cristo que nos apresenta hoje essa Palavra, ou melhor, que se apresenta a cada um de nós nessa Palavra, é chamado pelo autor da carta aos hebreus na segunda leitura de hoje de “iniciador” e “consumador” da nossa salvação. Aquele que desejou “conduzir muitos filhos à glória”. Ele provou em nosso favor a morte e por isso foi coroado de honra e glória. Ressuscitado, ele também nos ressuscitará no último dia, do qual este domingo é prenúncio e antecipação. Peçamos ao Pai por Cristo na força do Espírito Santo que esta Eucaristia fortaleça as nossas famílias.

Que as pedras do caminho e o peso dos anos não sufoquem aqueles que se colocaram nesta bela e exigente jornada. Que o amor nos nossos casais se renove a cada dia e se faça sempre jovem, como é o amor de Cristo pela sua Igreja. Ele sempre nos olha com a mesma ternura da primeira hora, apesar das rugas que marcam o nosso rosto. O peso das injúrias e até mesmo das infidelidades não arrefecem o seu amor humano-divino. Que esse mesmo amor inflame o coração dos nossos casais: um amor crucificado! Que o seu amor seja fortalecido e renovado pelo Senhor a fim de que nossas famílias sejam um sinal do próprio amor de Cristo pela sua Igreja! Que a fecundidade não se afaste de nossos lares, para que como diz o salmista: “os filhos sejam como rebentos de oliveira ao redor de tua mesa” e “tua esposa seja um videira bem fecunda no coração de tua casa”.

Que os homens percebam a loucura que é destruir a família ou destituir-lhe as características fundamentais, apresentando falsos modelos de família. Que a comunhão no Corpo e no Sangue do Senhor, que nos torna todos uma só e grande família de Deus, pelo poder do Espírito Santo, que tece as nossas relações, fortaleça e renove as famílias cristãs do mundo inteiro, para que estas incendeiem o mundo, sendo para tantas outras, que não estão ao redor dessa mesa, um sinal profético, uma motivação, um doce convite de Cristo a viverem a beleza do matrimônio e da família.

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04/10/2015 13:51 - Atualizado em 04/10/2015 13:52

Hoje Jesus nos faz uma catequese sobre o matrimônio e a família, sobre o lugar do homem e da mulher na economia da salvação. O texto do Evangelho se situa na viagem de Jesus em direção à Judeia. Enquanto Jesus ensinava às multidões, os fariseus se aproximaram d’Ele para pô-lo à prova. É proposta, então, a Jesus a questão a respeito da liceidade do divórcio. Os fariseus, desejosos de testar Jesus, perguntam se é lícito ou não ao marido repudiar a esposa.

De fato, era uma pergunta capciosa, feita simplesmente com a intenção destrutiva de testar Jesus. Os fariseus já conheciam bem o texto de Deuteronômio 24, que permitia ao homem despedir a sua esposa caso essa não encontrasse mais encanto aos seus olhos. Todavia, os fariseus querem pôr Jesus à prova, querem testá-Lo, querem ver se Ele se coloca contra a Torá, para terem, assim, um motivo para acusá-Lo. Todavia, Jesus não teme ser testado, porque Ele é a Palavra encarnada. Querendo testar Jesus os fariseus é que são testados com relação ao seu conhecimento da Torá.

De fato, parece que algumas vezes os fariseus só conhecem da Torá aquilo o que lhes é conveniente. Jesus, então, se revela como o verdadeiro fariseu, agora no sentido verdadeiro e puro do termo, como aquele homem zeloso da lei, que a conhece e a aplica na sua integridade e não segundo interesses escusos. Jesus pergunta aos fariseus o que diz Moisés, o que Moisés “mandou” fazer. Os fariseus remetem ao Deuteronômio 24, e afirmam que Moisés “permitiu” que se repudiasse a mulher. Interessante o jogo de palavras de Marcos: Jesus pergunta o que Moisés “mandou” e os fariseus respondem dizendo o que Moisés “permitiu”. Moisés, de fato, não “mandou”, mas “permitiu” que o homem desse à mulher um documento de divórcio por causa da sua esklerokardia, por causa da sua “dureza de coração”.

O tema da dureza de coração, da esklerokardia, aparece também nos profetas, como podemos ver em Jr 18,11-12: “E agora dize aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém: ‘Assim disse Adonai. Eis que eu preparo contra vós uma desgraça e formulo contra vós um plano. Converta-se, pois, cada um de seu caminho perverso, melhorai vossos caminhos e vossa obras.’ Mas ele dirão: ‘É inútil! Nós seguiremos nossos planos; cada um de nós agirá conforme a obstinação (dureza) do seu coração malvado.’ ” Também nos salmos Deus se lamenta por causa da esklerokardia do seu povo: Sl 81,12-13: “E meu povo não ouviu minha voz, Israel não quis obedecer-me; então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos!” O homem é entregue aos seus próprios caminhos por causa da sua dureza de coração. A esclerose do coração é mais daninha que a esclerose do corpo, porque ela torna o coração impermeável à Palavra de Deus e à novidade do Espírito. Por isso que é preciso receber o Reino de Deus com um coração de criança, não esclerosado, não enrijecido, como Jesus afirma no final dessa perícope.

Deus não pensou e nem desejou o divórcio. Esta foi uma decisão do homem Moisés em virtude da dureza de coração do povo. Mas, afirma Jesus, “no princípio”, no “gênesis”, no projeto original de Deus não foi assim. Jesus explica a Torá pela própria Torá! A Torá não se contradiz, pois o projeto original de Deus está lá manifestado, intacto, relatado no texto do Gênesis ao qual Jesus se refere. Todavia, na experiência da dureza de coração do povo Moisés lhes dá um preceito, transitório, que durará até que seus corações sejam dilatados para entender a Torá na sua integridade e não segundo os seus interesses.

Jesus retoma o texto do Gênesis 1,27 e 2,24 para afirmar que desde o princípio da criação “ele os fez homem e mulher, e os dois serão uma só carne.” E aqui se coloca a revelação de Deus sobre a verdade a respeito do homem e da mulher e, consequentemente, do matrimônio. Deus os fez “homem e mulher”. A nossa sexualidade é um elemento da nossa identidade. Somos caracterizados pelo ser homem ou mulher desde a nossa concepção. Ninguém decide ser homem ou mulher. Nascemos assim. A nossa masculinidade ou a nossa feminilidade é um dom, uma graça, que deve ser recebida com gratidão. Todo aquele que despreza o seu ser masculino ou feminino despreza um precioso dom de Deus.

Na sociedade atual, se quer apregoar que não temos sexo, mas temos gênero, e decidimos a que gênero queremos pertencer. Isso é loucura! Ser homem ou mulher não é fruto de uma decisão, mas é uma característica que trazemos desde o ventre materno e que deve ser recebida com gratidão, pela própria pessoa e por seus pais também. A pessoa que encontra alguma dificuldade no trato com a sua própria sexualidade deve ser amada e amparada, mas se deve conduzir esta pessoa a encontrar a verdade a respeito de si mesma. Amar as pessoas não significa deixar que elas sigam qualquer vento de doutrina, mas significa conduzi-las para a luz, para a verdade sobre si mesmas. A mesma sociedade que quer matar a família, quer destruir a verdade sobre a sexualidade do homem e da mulher.

Pois bem, assim sendo continuamos nosso caminho na primeira leitura, à qual o Evangelho nos remete. Vendo Deus que não era bom para o homem estar só, Deus resolve dar-lhe uma auxiliar “que lhe corresponda”. Deus fez com que todos os animais fossem nomeados por Adão, para que este percebesse o seu senhorio, o seu domínio sobre as coisas criadas.

Depois de dar nome a todos os animais Adão percebe que não existe entre eles alguém que lhe corresponda. Deus, então, faz cair um sono sobre Adão, uma espécie de êxtase, para que ele não veja a obra portentosa de Deus: a criação da mulher. O autor do Gênesis descreve então, de forma simbólica, mas rica em conteúdo teológico, a criação da mulher. Deus retira uma costela de Adão e a partir dela faz a mulher.

Deus conduz a mulher até Adão e este exclama numa ação profética: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem.” E, por isso, o homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua mulher e os dois serão uma só carne.

Várias ideias teológicas estão presentes neste texto do Gênesis. A primeira é a igualdade de condições entre o homem e a mulher: esta foi tirada do seu lado aberto! Ela se chamará mulher (em hebraico îshá) por foi tirada do homem (îsh): mesma raíz gramatical, mesma dignidade entre os dois. A segunda ideia teológica presente no texto é a do casamento monogâmico: Deus cria uma mulher que corresponde ao homem. A terceira mensagem teológica do texto é a da comunhão que deve existir entre o homem e a mulher. O homem reconhece na mulher alguém que lhe corresponde, um outro eu, por isso ele afirma: “esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne”. A mulher é a ajuda adequada para o homem, alguém com quem ele vai dividir a vida. E, por fim, a indissolubilidade do vínculo gerado entre os dois, não como uma lei, mas como um dom.

Aqui não há nenhuma lei, mas porque a mulher é a ajuda correspondente ao homem, é alguém com quem ele decide dividir a vida, é alguém que afasta dele toda a solidão, com quem ele vive em comunhão, porque precisamente para isto Deus o criou, para a comunhão, então a indissolubilidade desse vínculo é um dom.

Este é o projeto de Deus para o matrimônio e a família. Se outras coisas aparecem ainda que nas Escrituras, elas aparecem por causa da dureza do coração do homem, não porque Deus manda, mas porque os homens não querem viver plenamente na reta ordem que Deus estabeleceu para toda a criação, e então Deus permite determinadas atitude até que o homem seja capaz de ter o seu coração dilatado. Vemos que até mesmo o profeta Malaquias critica a postura dos que aceitam o mandato do divórcio: “Vós fazeis, também, outra coisa: cobris de lágrimas o altar de Adonai, com choro e gemidos, porque ele não se inclina mais para a oferenda a fim de recebê-la benignamente de vossas mãos. E perguntais: Por quê? – Porque Adonai é testemunha entre ti e a mulher de tua juventude, que traíste, embora ela seja a tua companheira e a mulher de tua aliança. Ele não fez um único ser, carne e sopro vital? O que procura esse único ser? Uma descendência de Deus! Guardai-vos, pois, no que diz respeito às vossa vidas; não traias a esposa de tua juventude” (Ml 2,13-15). Jesus em casa, conclui toda a questão com seus discípulos afirmando que tanto o homem quanto a mulher que repudiam o seu cônjuge e contraem nova união cometem adultério.

Somos chamados hoje a olhar o matrimônio sob o prisma sacramental. O matrimônio deve ser, para nós cristãos, um sinal visível da união de Cristo com sua Igreja. Se, em âmbito natural, o divórcio não se aplica porque contraria a verdade do matrimônio, destrói aquela família que se formou da livre e espontânea vontade de duas pessoas, mais ainda no âmbito religioso o divórcio se mostra como um grande contra testemunho para o mundo que nos cerca. O matrimônio cristão deve ser um sinal visível da união de Cristo com sua Igreja. Cristo não abandonou a Igreja. Ela, que também nasceu do seu lado aberto na cruz, como a mulher nasceu do lado aberto de Adão que dormia, não foi abandonada em nenhuma hipótese pelo seu esposo.

O amor de Cristo pela sua Igreja durou até a morte, foi um amor até as últimas consequências. Também o amor matrimonial, ainda que se torne, por causa das diferenças, um amor crucificado, é chamado a ser assumido até as suas últimas consequências. Se o matrimônio se tornou uma cruz, ele não deve ser arrastado, mas deve ser oferecido ao Pai como oblação pura. Muitas vezes a convivência matrimonial torna-se impossível, por diversos fatores, até mesmo não queridos por um ou ambos os cônjuges, todavia o vínculo assumido permanece até o fim, e é isso que Jesus nos lembra nesse evangelho. Em Cristo, o matrimônio nunca termina. Isso não deve ser encarado como um peso, como uma lei que mata, mas como um dom, como uma garantia de vitalidade. Cristo concede ao matrimônio a mesma durabilidade que o seu amor pela Igreja. O homem não pode separar aquilo o que Cristo uniu.

O que devemos refletir hoje é sobre a forma como as pessoas se preparam para o matrimônio. Acusa-se a Igreja por dificultar as coisas, por mandar as pessoas ficarem juntas mesmo quando já não se amam. Todavia, o problema não está na Igreja. Não é a Igreja que deve se adaptar à mentalidade do útil e do descartável que anda à solta pelas novelas. A Palavra de Cristo é imutável. A verdade a respeito do homem é imutável.

A Igreja não é dona, mas guardiã dessa verdade. Graças a Deus! Porque não nos falta, mesmo no âmbito intraeclesial, a tentação de querer manipular a verdade a nosso favor, para sermos mais “queridos e populares”. Ainda bem que a verdade de Cristo está acima da Igreja, que ela é depositária e guardiã da fé, assim esta se mantém sempre pura e acessível aos homens. Devemos nos questionar sobre como os jovens se preparam para o matrimônio.

Os nossos jovens cristãos querem amar até a cruz? É a cruz que eles buscam quando pensam no matrimônio? Será que ainda encontramos quem queira doar a própria vida? O que move um jovem cristão para o matrimônio? Este jovem pára e reflete se realmente o outro com quem deseja se unir vive a mesma dimensão de doação e entrega total? Somos nós que precisamos nos converter à Palavra de Deus e não a Palavra de Deus que precisa se converter a nós. Ela é a luz, portanto para ela devemos caminhar. Se não garantirmos a integridade, a indissolubilidade da família, não teremos um bom futuro. O Papa João Paulo II na “Familiaria Consortio” afirma: “O futuro da humanidade passa pela família!” Já experimentamos os frutos de uma sociedade desagredada: ela se torna também desagregadora! A desestruturação da família nos traz inúmeros problemas, destrói os nossos jovens e as nossas crianças, gera pessoas sem esperança e sem estabilidade.

Cristo que nos apresenta hoje essa Palavra, ou melhor, que se apresenta a cada um de nós nessa Palavra, é chamado pelo autor da carta aos hebreus na segunda leitura de hoje de “iniciador” e “consumador” da nossa salvação. Aquele que desejou “conduzir muitos filhos à glória”. Ele provou em nosso favor a morte e por isso foi coroado de honra e glória. Ressuscitado, ele também nos ressuscitará no último dia, do qual este domingo é prenúncio e antecipação. Peçamos ao Pai por Cristo na força do Espírito Santo que esta Eucaristia fortaleça as nossas famílias.

Que as pedras do caminho e o peso dos anos não sufoquem aqueles que se colocaram nesta bela e exigente jornada. Que o amor nos nossos casais se renove a cada dia e se faça sempre jovem, como é o amor de Cristo pela sua Igreja. Ele sempre nos olha com a mesma ternura da primeira hora, apesar das rugas que marcam o nosso rosto. O peso das injúrias e até mesmo das infidelidades não arrefecem o seu amor humano-divino. Que esse mesmo amor inflame o coração dos nossos casais: um amor crucificado! Que o seu amor seja fortalecido e renovado pelo Senhor a fim de que nossas famílias sejam um sinal do próprio amor de Cristo pela sua Igreja! Que a fecundidade não se afaste de nossos lares, para que como diz o salmista: “os filhos sejam como rebentos de oliveira ao redor de tua mesa” e “tua esposa seja um videira bem fecunda no coração de tua casa”.

Que os homens percebam a loucura que é destruir a família ou destituir-lhe as características fundamentais, apresentando falsos modelos de família. Que a comunhão no Corpo e no Sangue do Senhor, que nos torna todos uma só e grande família de Deus, pelo poder do Espírito Santo, que tece as nossas relações, fortaleça e renove as famílias cristãs do mundo inteiro, para que estas incendeiem o mundo, sendo para tantas outras, que não estão ao redor dessa mesa, um sinal profético, uma motivação, um doce convite de Cristo a viverem a beleza do matrimônio e da família.

Padre Fábio Siqueira
Autor

Padre Fábio Siqueira

Vice-diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida