Arquidiocese do Rio de Janeiro

34º 22º

Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 17/05/2024

17 de Maio de 2024

Renunciar ao que não é de Cristo

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Renunciar ao que não é de Cristo

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11/09/2015 17:45 - Atualizado em 11/09/2015 17:46

Renunciar ao que não é de Cristo 0

11/09/2015 17:45 - Atualizado em 11/09/2015 17:46

Sentir em nós a “ação do amor de Deus” e “servi-lo de todo o coração”, aliás o pedido é para que “servindo-o de todo o coração” possamos sentir em nós a “ação do seu amor”, como nos diz a coleta de hoje. Esse é o objetivo do nosso servir a Deus. E o nosso “serviço” a Deus não se dá apenas quando realizamos alguma “ação pastoral”. Também a liturgia é “serviço divino” e, poderíamos dizer, a liturgia é o “serviço divino por excelência”. São Bento, por exemplo, pai do monaquismo ocidental, não hesita em chamar a recitação em coro dos Salmos de “Opus Dei”, ou seja, “Obra de Deus / Serviço prestado a Deus”. Seja na liturgia, seja naquilo o que dela decorre, a saber, a nossa ação pastoral nos seus mais diversos âmbitos, o que nós queremos é experimentar o “amor de Deus” que preenche até as fibras mais escondidas do nosso ser a fim de que entremos numa comunhão de vida cada vez mais profunda com ele.

A primeira leitura nos apresenta o “terceiro canto do Servo de YHWH”. O servo de YHWH é uma figura misteriosa que aparece no livro de Isaías. Alguém que tomará sobre si as dores do povo, que sofrerá, mas que testemunha, particularmente na perícope que ouvimos hoje, a sua plena confiança na ação divina. O servo de YHWH ou servo sofredor é uma dessas figuras que só se esclarece plenamente à luz do Novo Testamento. É em Cristo que vamos poder entender de quem Isaías falava.

Hoje nos é apresentada na liturgia apenas uma parte do canto, os vv. 5-9. No v. 5 encontramos uma afirmação feita pelo próprio servo, que diz respeito à sua obediência: “O Senhor YHWH abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei.” O servo sofredor se manifesta, assim, como alguém que ouve e põe em prática uma palavra recebida de Deus. Ele não recua, ainda que essa palavra seja exigente e possa conduzi-lo pelo caminho da provação e do sofrimento.

De fato, o v. 6 apresenta o sofrimento experimentado pelo servo, sofrimento esse expresso por dois verbos: “oferecer (heb. natan)” e “não esconder-se (heb. satar)”. O servo “oferece”, ele literalmente “dá” o seu dorso para aqueles que querem feri-lo e a sua face para aqueles que querem arrancar-lhe a barba. E ele “não se esconde”, ele não foge daqueles que querem ofendê-lo e cuspir nele.

Nos vv. 7-9a encontramos a manifestação da confiança do servo no auxílio divino. O Senhor “virá em seu socorro”, segundo o texto hebraico, ou, seguindo a versão grega, recolhida também na Neo Vulgata, e cuja tradução se alinha com a que encontramos no nosso lecionário, o “Senhor” é o seu “Auxiliador”, por isso ele não sairá humilhado. O seu rosto fica impassível como uma rocha, porque ele sabe que não será confundido. O início do v. 7 se repete inteiramente no v. 9, onde mais uma vez o servo sofredor manifesta a sua confiança absoluta de que Deus virá em seu socorro, por isso ninguém pode se fazer juiz dele.

Por assonância poderíamos ler Is 50,7 com o Cântico de Moisés de Ex 15,2. O Cântico de dois servos: o primeiro servo, Moisés, cantando um hino de vitória, após atravessar o Mar Vermelho; o segundo, um servo ainda sofredor, mas de certa forma, pela fé, já vitorioso também, porque sabe que não sairá confundido, proclama a vinda do auxílio divino em seu favor. Em Ex 15,2 encontramos a expressão ‘azî, que significa “minha força”, referindo-se, é claro, a YHWH. Em Is 50,7 encontramos o verbo ‘azar (vir em socorro), conjugado na frase ‘yaazar-lî, manifestando a plena confiança do servo sofredor de que não sairá confundido, porque o Senhor “virá ajuda-lo”.

 

Texto Hebraico

Transliteração

Ex 15,2: עָזִּי

‘azî

Is 50,7: יַעֲזָר־לִי

‘yaazar-lî

 

               

O Salmo 114 é, na versão hebraica, a primeira parte do Salmo 116, que inclui em si o que na LXX e na Vulgata são os salmos 114-155. É um salmo de ação de graças, um dos que compõem o Hallel, o conjunto dos Salmos (113-118) que na Bíblia Hebraica são abertos pelo termo Aleluia!, ou seja, Louvai a YHWH!.

Santo Agostinho comenta esse Salmo, mas partindo de uma tradução que foi feita a partir da LXX. Na versão grega, ao invés de “andar”, o verbo que encontramos é o verbo “agradar”. O versículo então se modifica, ficando “Serei agradável ao Senhor na terra dos vivos”. Comentando então este versículo Santo Agostinho afirma:

“Quem pode gradar ao Deus vivo, num corpo morto? Mas que diz o apóstolo? ‘Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós’ (cf. Rm 8,8-11). Então estaremos ‘na região dos vivos’, inteiramente agradáveis ao Senhor, e não de forma alguma peregrinos longe dele. ‘Enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor, e na medida mesma em que peregrinamos, não nos achamos na região dos vivos. Sim, estamos cheios de confiança, e preferimos deixar a mansão deste corpo para ir morar junto do Senhor. Por isso também esforçamo-nos por agradar-lhe, quer permaneçamos em nossa mansão, quer a deixemos’ (2Cor 5,6-9). Esforçamo-nos, na verdade, agora, porque ainda suspiramos pela redenção do nosso corpo (cf. Rm 8,23); mas quando a morte for absorvida pela vitória, e este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade, e este ser mortal tiver revestido a imortalidade (1Cor 5,54), então não haverá mais choro, porque não existirá queda alguma, e nenhuma queda porque não há corrupção. E assim já não nos esforçaremos por agradar-lhe, mas agradaremos inteiramente ao Senhor, na região dos vivos.”[1]

O trecho do Evangelho de hoje é a realização do que dizíamos mais acima sobre o Servo de YHWH, essa figura misteriosa do livro de Isaías, ou seja, Jesus se manifesta como o verdadeiro servo sofredor, que há de redimir o mundo com o seu sofrimento e que ressuscitará ao terceiro, sendo este último elemento o que há de próprio no Novo Testamento, pois em Isaías só se falava do sofrimento do servo e da sua exaltação por Deus, sem se falar de ressurreição.

Este trecho de Marcos aparece também nos outros sinóticos, sempre com a mesma estrutura, conforme podemos ver abaixo:

  • Lucas: profissão de fé de Pedro (Lc 9, 18-21); primeiro anúncio da paixão (Lc 9, 22); condições para seguir Jesus (Lc 9, 23-26);


  • Mateus: profissão de fé de Pedro (Mt 16,13-20) – mas com uma significativa diferença, pois Jesus confirma Pedro na sua função e lhe dá as chaves; primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23); condições para seguir Jesus (Mt 16,24-27);


  • Marcos: profissão de fé de Pedro (Mc 8,27-30); primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-33); condições para seguir Jesus (Mc 8,34-38).


A primeira parte do evangelho, os vv. 27-30, apresenta a profissão de fé de Pedro. Diferentemente de Mateus, não encontramos aqui o elogio da fé de Pedro e nem a entrega das chaves. Contudo, encontramos no v. 30 o mesmo que em Lc 9,21, a proibição de contar a alguém o fato de ser Jesus o Messias. Dentro do evangelho de Marcos, no conjunto dos demais versículos onde Jesus faz a mesma proibição, encontramos aqui mais uma manifestação do “segredo messiânico”, essa característica própria do evangelista onde Jesus exige dos seus discípulos que não contem a ninguém a respeito da sua messianidade.

Muito provavelmente esse gesto de Jesus tem a ver com o fato de ele não querer ser reconhecido como um Messias aos moldes da expectativa judaica, ou seja, como um líder apenas político. Ele é, na verdade, o servo sofredor, que vai tomar sobre si o jugo que pesa sobre os homens, e vai realmente salvá-los, mas num nível que vai além do meramente temporal, porque Ele também vai ressuscitar e, assim, garantir a vida eterna a todos os que crêem em seu nome.

Nessa primeira parte Jesus quer saber dos apóstolos o que pensam dele os “homens”, as multidões, os que não estão no seu círculo mais íntimo de discípulos. Segundo os apóstolos a resposta é muito difusa: para alguns ele seria o Batista, para outros o profeta Elias que havia retornado realizando a profecia de Malaquias (cf. Ml 3) e, ainda para outros, Jesus seria um dos profetas ressurgido de entre os mortos.

Jesus deseja, então, saber o que pensam dele aqueles que estão ele sempre e dirige a sua pergunta ao círculo dos discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, em nome dos doze, toma a Palavra e afirma: “Tu és o Messias”.

Podemos trazer para a nossa realidade esse momento de Jesus com seus discípulos. As coisas não mudaram daquele tempo para hoje. Se também hoje Jesus nos perguntasse o que pensam dele as pessoas, nossa resposta seria difusa, porque difusa e confusa é a visão dos homens a respeito de quem seja Jesus. Porém o Mestre também deseja dirigir a sua pergunta a nós, que estamos com Ele e somos seus discípulos. Quem é Cristo para nós? Esta é uma pergunta fundamental a qual cada cristão deve responder no mais íntimo do seu ser. Será que, como para Pedro, também para nós Ele é o Messias, com tudo o que esse título significa no contexto do Antigo e do Novo Testamento?

Passamos, então, aos vv. 31-33, onde Jesus faz o primeiro anúncio da sua paixão. O anúncio do fato misterioso da sua paixão só pode vir depois do seu reconhecimento como Messias. Assim, tanto os discípulos ficam livres de uma concepção meramente política de Messias, quanto também a paixão de Cristo passa a ser interpretada não como um ponto final, mas como parte do grande projeto salvífico do Pai, manifestado em Cristo, pois afinal Cristo também anuncia aqui a sua ressurreição, anúncio esse que parece não entrar nos ouvidos dos discípulos e, particularmente, de Pedro, que toma Jesus a parte para repreendê-lo.

Pedro quer ensinar Jesus como ser Messias! É por isso que Jesus vai dizer a Pedro: “Vai para trás de mim!” Pedro quer passar a frente e Jesus lhe mostra que o seu lugar é atrás, como discípulo, seguindo e observando o Mestre para poder fazer da sua vida uma verdadeira imitação daquilo o que é a vida do Mestre. Pedro não havia entrado ainda na lógica de Deus e, por isso, não consegue compreender o projeto salvífico do Pai manifestado em Jesus Cristo.

No final da perícope, nos vv. 34-38, encontramos as condições para seguir o Cristo. No trecho que nos é proposto hoje pela liturgia ouvimos apenas os vv. 34 e 35. Quem quer ser discípulo deve fazer três coisas: renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e então seguir Jesus. Mais ainda, a perícope termina com um paradoxo: quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem a perder por causa de Cristo e do seu Evangelho, esse vai salvá-la.

Renunciar a si mesmo e tomar a cruz significa “iniciar um caminho”, uma jornada com o Cristo. Assim como Ele, renunciando a tudo, tomará sobre si a cruz, também quem quer ser seu discípulo deve empreender a mesma estrada. E ainda poderíamos completar dizendo: esse discípulo vai ter de se deixar prender a essa cruz como Cristo e morrer. Tudo isso está dentro do “segue-me” colocado no final do v. 34. Contudo, existe uma esperança para além da cruz, que dá sentido à própria cruz. Cristo prometeu ressuscitar e quem o segue também será por Ele ressuscitado. Essa esperança de vida eterna é que guia sempre o discípulo de Cristo.

Podemos ver também o “renunciar a si mesmo” em dois prismas: o primeiro, é o daquele que deixa tudo para seguir o Mestre, renunciando de certa forma a sua carreira, família, amigos, a tudo, para ter o coração livre e disponível a fim de se tornar um com o Um; também vejo o renunciar a si mesmo como uma tarefa dada a todos os homens, uma vez que, marcados pelo pecado original, somos inclinados a fazer justamente o que nos afasta daquilo o que nos constitui plenamente humanos e, na empreitada de verdadeiramente nos humanizarmos somos chamados a renunciar a nós mesmo a fim de nos tornarmos totalmente semelhantes ao Cristo.

Nesse sentido percebemos o gancho entre os versículos 34 e 35. É preciso “renunciar a si mesmo”, pois quem quer salvar a sua vida perde-a e quem aceita perde-la, salva-a. O que será que Jesus quis dizer com isso? Os mártires viveram literalmente esse versículo. Mas será que ele também não quer dizer algo para nós que, pelo menos por enquanto, não nos encontramos ameaçados pelo martírio? O Mestre quer nos mostrar que querendo salvar a nossa vida, querendo talvez vivê-la intensamente, mas sem o Cristo, acabamos seguindo apenas as inclinações perversas de nosso coração e, assim, perdemos a essência da vida, que só pode nos ser revelada pelo Cristo. Perdendo, ao contrário, a nossa vida aos olhos do mundo, ou seja, vivendo segundo os critérios de Cristo e não segundo os nossos critérios ou aqueles que o mundo nos oferece, acabamos por ganhar a verdadeira vida, aquela que procede unicamente do trono da graça. Aqui nos ajuda muito o v. 36, que afirma que de nada adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a própria vida. Só quem se entregue a Cristo e ao seu Evangelho consegue realmente “salvar” a sua vida, neste mundo e no outro.

Peçamos ao Senhor a graça de olharmos com gratidão para o seu sacrifício. Que da contemplação do seu sacrifício de amor nasça em nós o desejo de também renunciarmos ao que não é de Cristo em nossa vida, a fim de vivermos unicamente para Ele, que por nós morreu e ressuscitou.



[1]Santo Agostinho. Comentário aos Salmos: Salmos 101-150. Paulus, p. 348.

 

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11/09/2015 17:45 - Atualizado em 11/09/2015 17:46

Sentir em nós a “ação do amor de Deus” e “servi-lo de todo o coração”, aliás o pedido é para que “servindo-o de todo o coração” possamos sentir em nós a “ação do seu amor”, como nos diz a coleta de hoje. Esse é o objetivo do nosso servir a Deus. E o nosso “serviço” a Deus não se dá apenas quando realizamos alguma “ação pastoral”. Também a liturgia é “serviço divino” e, poderíamos dizer, a liturgia é o “serviço divino por excelência”. São Bento, por exemplo, pai do monaquismo ocidental, não hesita em chamar a recitação em coro dos Salmos de “Opus Dei”, ou seja, “Obra de Deus / Serviço prestado a Deus”. Seja na liturgia, seja naquilo o que dela decorre, a saber, a nossa ação pastoral nos seus mais diversos âmbitos, o que nós queremos é experimentar o “amor de Deus” que preenche até as fibras mais escondidas do nosso ser a fim de que entremos numa comunhão de vida cada vez mais profunda com ele.

A primeira leitura nos apresenta o “terceiro canto do Servo de YHWH”. O servo de YHWH é uma figura misteriosa que aparece no livro de Isaías. Alguém que tomará sobre si as dores do povo, que sofrerá, mas que testemunha, particularmente na perícope que ouvimos hoje, a sua plena confiança na ação divina. O servo de YHWH ou servo sofredor é uma dessas figuras que só se esclarece plenamente à luz do Novo Testamento. É em Cristo que vamos poder entender de quem Isaías falava.

Hoje nos é apresentada na liturgia apenas uma parte do canto, os vv. 5-9. No v. 5 encontramos uma afirmação feita pelo próprio servo, que diz respeito à sua obediência: “O Senhor YHWH abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei.” O servo sofredor se manifesta, assim, como alguém que ouve e põe em prática uma palavra recebida de Deus. Ele não recua, ainda que essa palavra seja exigente e possa conduzi-lo pelo caminho da provação e do sofrimento.

De fato, o v. 6 apresenta o sofrimento experimentado pelo servo, sofrimento esse expresso por dois verbos: “oferecer (heb. natan)” e “não esconder-se (heb. satar)”. O servo “oferece”, ele literalmente “dá” o seu dorso para aqueles que querem feri-lo e a sua face para aqueles que querem arrancar-lhe a barba. E ele “não se esconde”, ele não foge daqueles que querem ofendê-lo e cuspir nele.

Nos vv. 7-9a encontramos a manifestação da confiança do servo no auxílio divino. O Senhor “virá em seu socorro”, segundo o texto hebraico, ou, seguindo a versão grega, recolhida também na Neo Vulgata, e cuja tradução se alinha com a que encontramos no nosso lecionário, o “Senhor” é o seu “Auxiliador”, por isso ele não sairá humilhado. O seu rosto fica impassível como uma rocha, porque ele sabe que não será confundido. O início do v. 7 se repete inteiramente no v. 9, onde mais uma vez o servo sofredor manifesta a sua confiança absoluta de que Deus virá em seu socorro, por isso ninguém pode se fazer juiz dele.

Por assonância poderíamos ler Is 50,7 com o Cântico de Moisés de Ex 15,2. O Cântico de dois servos: o primeiro servo, Moisés, cantando um hino de vitória, após atravessar o Mar Vermelho; o segundo, um servo ainda sofredor, mas de certa forma, pela fé, já vitorioso também, porque sabe que não sairá confundido, proclama a vinda do auxílio divino em seu favor. Em Ex 15,2 encontramos a expressão ‘azî, que significa “minha força”, referindo-se, é claro, a YHWH. Em Is 50,7 encontramos o verbo ‘azar (vir em socorro), conjugado na frase ‘yaazar-lî, manifestando a plena confiança do servo sofredor de que não sairá confundido, porque o Senhor “virá ajuda-lo”.

 

Texto Hebraico

Transliteração

Ex 15,2: עָזִּי

‘azî

Is 50,7: יַעֲזָר־לִי

‘yaazar-lî

 

               

O Salmo 114 é, na versão hebraica, a primeira parte do Salmo 116, que inclui em si o que na LXX e na Vulgata são os salmos 114-155. É um salmo de ação de graças, um dos que compõem o Hallel, o conjunto dos Salmos (113-118) que na Bíblia Hebraica são abertos pelo termo Aleluia!, ou seja, Louvai a YHWH!.

Santo Agostinho comenta esse Salmo, mas partindo de uma tradução que foi feita a partir da LXX. Na versão grega, ao invés de “andar”, o verbo que encontramos é o verbo “agradar”. O versículo então se modifica, ficando “Serei agradável ao Senhor na terra dos vivos”. Comentando então este versículo Santo Agostinho afirma:

“Quem pode gradar ao Deus vivo, num corpo morto? Mas que diz o apóstolo? ‘Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós’ (cf. Rm 8,8-11). Então estaremos ‘na região dos vivos’, inteiramente agradáveis ao Senhor, e não de forma alguma peregrinos longe dele. ‘Enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor, e na medida mesma em que peregrinamos, não nos achamos na região dos vivos. Sim, estamos cheios de confiança, e preferimos deixar a mansão deste corpo para ir morar junto do Senhor. Por isso também esforçamo-nos por agradar-lhe, quer permaneçamos em nossa mansão, quer a deixemos’ (2Cor 5,6-9). Esforçamo-nos, na verdade, agora, porque ainda suspiramos pela redenção do nosso corpo (cf. Rm 8,23); mas quando a morte for absorvida pela vitória, e este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade, e este ser mortal tiver revestido a imortalidade (1Cor 5,54), então não haverá mais choro, porque não existirá queda alguma, e nenhuma queda porque não há corrupção. E assim já não nos esforçaremos por agradar-lhe, mas agradaremos inteiramente ao Senhor, na região dos vivos.”[1]

O trecho do Evangelho de hoje é a realização do que dizíamos mais acima sobre o Servo de YHWH, essa figura misteriosa do livro de Isaías, ou seja, Jesus se manifesta como o verdadeiro servo sofredor, que há de redimir o mundo com o seu sofrimento e que ressuscitará ao terceiro, sendo este último elemento o que há de próprio no Novo Testamento, pois em Isaías só se falava do sofrimento do servo e da sua exaltação por Deus, sem se falar de ressurreição.

Este trecho de Marcos aparece também nos outros sinóticos, sempre com a mesma estrutura, conforme podemos ver abaixo:

  • Lucas: profissão de fé de Pedro (Lc 9, 18-21); primeiro anúncio da paixão (Lc 9, 22); condições para seguir Jesus (Lc 9, 23-26);


  • Mateus: profissão de fé de Pedro (Mt 16,13-20) – mas com uma significativa diferença, pois Jesus confirma Pedro na sua função e lhe dá as chaves; primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23); condições para seguir Jesus (Mt 16,24-27);


  • Marcos: profissão de fé de Pedro (Mc 8,27-30); primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-33); condições para seguir Jesus (Mc 8,34-38).


A primeira parte do evangelho, os vv. 27-30, apresenta a profissão de fé de Pedro. Diferentemente de Mateus, não encontramos aqui o elogio da fé de Pedro e nem a entrega das chaves. Contudo, encontramos no v. 30 o mesmo que em Lc 9,21, a proibição de contar a alguém o fato de ser Jesus o Messias. Dentro do evangelho de Marcos, no conjunto dos demais versículos onde Jesus faz a mesma proibição, encontramos aqui mais uma manifestação do “segredo messiânico”, essa característica própria do evangelista onde Jesus exige dos seus discípulos que não contem a ninguém a respeito da sua messianidade.

Muito provavelmente esse gesto de Jesus tem a ver com o fato de ele não querer ser reconhecido como um Messias aos moldes da expectativa judaica, ou seja, como um líder apenas político. Ele é, na verdade, o servo sofredor, que vai tomar sobre si o jugo que pesa sobre os homens, e vai realmente salvá-los, mas num nível que vai além do meramente temporal, porque Ele também vai ressuscitar e, assim, garantir a vida eterna a todos os que crêem em seu nome.

Nessa primeira parte Jesus quer saber dos apóstolos o que pensam dele os “homens”, as multidões, os que não estão no seu círculo mais íntimo de discípulos. Segundo os apóstolos a resposta é muito difusa: para alguns ele seria o Batista, para outros o profeta Elias que havia retornado realizando a profecia de Malaquias (cf. Ml 3) e, ainda para outros, Jesus seria um dos profetas ressurgido de entre os mortos.

Jesus deseja, então, saber o que pensam dele aqueles que estão ele sempre e dirige a sua pergunta ao círculo dos discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, em nome dos doze, toma a Palavra e afirma: “Tu és o Messias”.

Podemos trazer para a nossa realidade esse momento de Jesus com seus discípulos. As coisas não mudaram daquele tempo para hoje. Se também hoje Jesus nos perguntasse o que pensam dele as pessoas, nossa resposta seria difusa, porque difusa e confusa é a visão dos homens a respeito de quem seja Jesus. Porém o Mestre também deseja dirigir a sua pergunta a nós, que estamos com Ele e somos seus discípulos. Quem é Cristo para nós? Esta é uma pergunta fundamental a qual cada cristão deve responder no mais íntimo do seu ser. Será que, como para Pedro, também para nós Ele é o Messias, com tudo o que esse título significa no contexto do Antigo e do Novo Testamento?

Passamos, então, aos vv. 31-33, onde Jesus faz o primeiro anúncio da sua paixão. O anúncio do fato misterioso da sua paixão só pode vir depois do seu reconhecimento como Messias. Assim, tanto os discípulos ficam livres de uma concepção meramente política de Messias, quanto também a paixão de Cristo passa a ser interpretada não como um ponto final, mas como parte do grande projeto salvífico do Pai, manifestado em Cristo, pois afinal Cristo também anuncia aqui a sua ressurreição, anúncio esse que parece não entrar nos ouvidos dos discípulos e, particularmente, de Pedro, que toma Jesus a parte para repreendê-lo.

Pedro quer ensinar Jesus como ser Messias! É por isso que Jesus vai dizer a Pedro: “Vai para trás de mim!” Pedro quer passar a frente e Jesus lhe mostra que o seu lugar é atrás, como discípulo, seguindo e observando o Mestre para poder fazer da sua vida uma verdadeira imitação daquilo o que é a vida do Mestre. Pedro não havia entrado ainda na lógica de Deus e, por isso, não consegue compreender o projeto salvífico do Pai manifestado em Jesus Cristo.

No final da perícope, nos vv. 34-38, encontramos as condições para seguir o Cristo. No trecho que nos é proposto hoje pela liturgia ouvimos apenas os vv. 34 e 35. Quem quer ser discípulo deve fazer três coisas: renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e então seguir Jesus. Mais ainda, a perícope termina com um paradoxo: quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem a perder por causa de Cristo e do seu Evangelho, esse vai salvá-la.

Renunciar a si mesmo e tomar a cruz significa “iniciar um caminho”, uma jornada com o Cristo. Assim como Ele, renunciando a tudo, tomará sobre si a cruz, também quem quer ser seu discípulo deve empreender a mesma estrada. E ainda poderíamos completar dizendo: esse discípulo vai ter de se deixar prender a essa cruz como Cristo e morrer. Tudo isso está dentro do “segue-me” colocado no final do v. 34. Contudo, existe uma esperança para além da cruz, que dá sentido à própria cruz. Cristo prometeu ressuscitar e quem o segue também será por Ele ressuscitado. Essa esperança de vida eterna é que guia sempre o discípulo de Cristo.

Podemos ver também o “renunciar a si mesmo” em dois prismas: o primeiro, é o daquele que deixa tudo para seguir o Mestre, renunciando de certa forma a sua carreira, família, amigos, a tudo, para ter o coração livre e disponível a fim de se tornar um com o Um; também vejo o renunciar a si mesmo como uma tarefa dada a todos os homens, uma vez que, marcados pelo pecado original, somos inclinados a fazer justamente o que nos afasta daquilo o que nos constitui plenamente humanos e, na empreitada de verdadeiramente nos humanizarmos somos chamados a renunciar a nós mesmo a fim de nos tornarmos totalmente semelhantes ao Cristo.

Nesse sentido percebemos o gancho entre os versículos 34 e 35. É preciso “renunciar a si mesmo”, pois quem quer salvar a sua vida perde-a e quem aceita perde-la, salva-a. O que será que Jesus quis dizer com isso? Os mártires viveram literalmente esse versículo. Mas será que ele também não quer dizer algo para nós que, pelo menos por enquanto, não nos encontramos ameaçados pelo martírio? O Mestre quer nos mostrar que querendo salvar a nossa vida, querendo talvez vivê-la intensamente, mas sem o Cristo, acabamos seguindo apenas as inclinações perversas de nosso coração e, assim, perdemos a essência da vida, que só pode nos ser revelada pelo Cristo. Perdendo, ao contrário, a nossa vida aos olhos do mundo, ou seja, vivendo segundo os critérios de Cristo e não segundo os nossos critérios ou aqueles que o mundo nos oferece, acabamos por ganhar a verdadeira vida, aquela que procede unicamente do trono da graça. Aqui nos ajuda muito o v. 36, que afirma que de nada adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a própria vida. Só quem se entregue a Cristo e ao seu Evangelho consegue realmente “salvar” a sua vida, neste mundo e no outro.

Peçamos ao Senhor a graça de olharmos com gratidão para o seu sacrifício. Que da contemplação do seu sacrifício de amor nasça em nós o desejo de também renunciarmos ao que não é de Cristo em nossa vida, a fim de vivermos unicamente para Ele, que por nós morreu e ressuscitou.



[1]Santo Agostinho. Comentário aos Salmos: Salmos 101-150. Paulus, p. 348.

 

Padre Fábio Siqueira
Autor

Padre Fábio Siqueira

Vice-diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida