Arquidiocese do Rio de Janeiro

28º 23º

Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 26/04/2024

26 de Abril de 2024

"Vida Monástica: uma vivência a testemunhar os valores da cultura de paz no mundo contemporâneo"

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29/10/2014 17:39 - Atualizado em 29/10/2014 17:41

"Vida Monástica: uma vivência a testemunhar os valores da cultura de paz no mundo contemporâneo" 0

29/10/2014 17:39 - Atualizado em 29/10/2014 17:41

“Vida Monástica: uma vivência a testemunhar os valores da cultura de paz no mundo contemporâneo”

Palestra no Simpósio sobre a Vida Consagrada Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro

28 de outubro de 2014

 

Cardeal Orani João Tempesta,O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

1. Introdução

Falar sobre a vida monástica sempre implica uma reflexão sobre as nossas origens. Não com saudosismo ou ufanismo, mas com o olhar do discípulo-missionário que aprende com experiências passadas para colocá-las em prática no âmbito de sua atuação.  

Impossível citar aqui todas as obras realizadas pelas gerações de monges nossos predecessores, devido à amplitude e ineditismo da atuação deles, nos diversos segmentos em que contribuiram para a Igreja e a sociedade, ao longo dos séculos.

No âmbito missionário, as comunidades monásticas deram à Igreja vinte e cinco papas, além de expoentes da Patrística e Doutores. No serviço à sociedade, apenas para lembrar algumas grandes linhas da atuação dos monges católicos no Ocidente, tivemos confrades que foram, escritores, mestres, copistas, e também agricultores, enfermeiros, famarcêuticos, bibliotecários, construtores e artesãos. Sobretudo, vale destacar a capacidade de aperfeiçoar instrumentos e técnicas que desenvolveram nas suas respectivas áreas de trabalho.

Graças à figura inspirada e inspiradora de São Bento, que o Beato Paulo VI declarou Patrono da Europa, o monacato ocidental ganhou uma Regra que perdura até os nossos dias e uma estruturação que iria contribuir para converter e civilizar aquele continente e estender sua influência até à América e aos demais continentes. Os monges evangelizaram a maior parte da Europa Ocidental e consolidaram a fé pela construção de vários mosteiros nos países evangelizados.

Passados os seis primeiros séculos do florescimento monacal, a partir da disseminação do ideal de São Bento com a fundação das Abadias de Cluny e de Cister, houve períodos críticos, que naturalmente fazem parte da caminhada nas diversas mudanças socioculturais. Em diversos períodos de sua história, o monaquismo se viu diante de situações intra-eclesiais e político-sociais que suscitaram crises de identidade, questionamentos quanto ao seu papel na Igreja, necessidades de voltar às raízes e de promover reformas.

O surgimento das novas ordens mendicantes no século XII, que nascem nas cidades em processo de expansão, arrebata populações e ganha enorme influência nas universidades, enquanto os mosteiros beneditinos e cistercienses encontram-se fora desse eixo, nas regiões rurais. Outras congregações também foram assumindo missões que antes eram exercidas apenas pelos monges.

Além disso, circunstâncias como epidemias, guerras, fechamento de mosteiros por decisões de governos, contribuíram para enfraquecer o monacato em alguns períodos da história. Do século passado podemos destacar as duas Guerras Mundiais, que conturbaram a Europa, e as preocupações com o aggiornamento pós-Vaticano II, que exigiu, não apenas dos monges mas de todos os religiosos, um claro discernimento quanto ao equilíbrio entre a vida de oração e a missão.

Diante de todos esses desafios e dificuldades, a vida monástica soube refletir sobre seu papel na Igreja de seu tempo e reformar-se quando necessário, seja para uma retomada na austeridade dos costumes como para um novo impulso missionário. Nossa presença na Igreja é fruto deste longo percurso, cheio de percalços e também de vitórias.

“No Ocidente, o monaquismo é celebração feita de memória e vigília: memória das maravilhas realizadas por Deus, vigília do cumprimento definitivo da esperança. A mensagem do monaquismo e da vida contemplativa repete, sem cessar, que o primado de Deus é plenitude de sentido e de alegria para a vida humana, pois o homem está feito para Deus e vive inquieto até encontrar n'Ele a paz.” (São João Paulo II – Exortação Apostólica Vita Consecrata nº 27)

2. Oração e trabalho

A primeira e fundamental característica daquele que o Senhor chamou à vida consagrada é “estar no mundo sem ser do mundo”: “Por eles é que eu rogo. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus. Dei-lhes a tua palavra, mas o mundo os odeia, porque eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo” (Jo 17,9.14).

Esta tensão, que em última análise refere-se a toda forma de vida consagrada, tem sua peculiaridade monástica resumida no princípio de São Bento: “Ora et labora”. A primazia da vida de oração possui, na feição beneditina, uma característica marcadamente comunitária, com sua fonte na espiritualidade litúrgica. O segundo aspecto, o do trabalho, diversificou-se nas obras de evangelização, na cultura e nas atividades operacionais destinadas à manutenção do mosteiro e ao desenvolvimento de suas circunvizinhanças.

São Bento certamente não previu todos os desdobramentos das atividades que seus monges iriam exercer nos séculos futuros. Mas uma coisa é certa: elas seriam sempre alicerçadas na vida de oração e na obediência, como diz o Prólogo da Santa Regra: “[40] Portanto, é preciso preparar nossos corações e nossos corpos para militar na santa obediência dos preceitos; [41] e em tudo aquilo que nossa natureza tiver menores possibilidades, roguemos ao Senhor que ordene a sua graça que nos preste auxílio. [42] E, se, fugindo das penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, [43] enquanto é tempo, e ainda estamos neste corpo e é possível realizar todas essas coisas no decorrer desta vida de luz, [44] cumpre correr e agir, agora, de forma que nos aproveite para sempre.”

A fuga mundi para o monge era a consciência de viver em comunhão com Deus, mas trabalhando na construção de um mundo mais humano e fraterno, no qual o Reino de Deus já começava a se instaurar. Mesmo os anacoretas, vivendo na solidão do deserto,  frequentemente recebiam pessoas que desejavam beber de sua sabedoria a experiência contemplativa.

Na vida cenobítica, seguindo a prática da obediência, o monge assumia o trabalho que outros rejeitavam. Na sociedade medieval, que menosprezava o trabalho manual como sendo próprio dos servos, os monges ocuparam os espaços de realização das obras de infraestrutura e produtivas, com o bom desempenho que sua formação proporcionava.

No plano intelectual, dentro de uma sociedade que valorizava as tradições medievais de cavalaria, o monge assumia o trabalho intelectual, que era destinado aos mais fracos. Este trabalho frutificou na excelente formação religiosa e cultural dos monges vocacionados ao sacerdócio, na criação das grandes escolas que prepararam o surgimento das universidades e na hegemonia dos monges em várias áreas do conhecimento da época. Além da teologia, destacavam-se em literatura, história, poesia, matemática, gramática, filologia etc.   

“Na sua forma atual, inspirada especialmente em São Bento, o monaquismo ocidental recolhe a herança de tantos homens e mulheres que, renunciando à vida levada no mundo, procuraram a Deus e a Ele se dedicaram, «sem nada antepor ao amor de Cristo». Também os monges de hoje se esforçam por conciliar harmoniosamente a vida interior e o trabalho , no compromisso evangélico da conversão dos costumes, da obediência, da clausura, e na dedicação assídua à meditação da Palavra (lectio divina), à celebração da liturgia, à oração. Os mosteiros foram e continuam a ser, no coração da Igreja e do mundo, um sinal eloquente de comunhão, um lugar acolhedor para aqueles que buscam Deus e as coisas do espírito, escolas de fé e verdadeiros centros de estudo, diálogo e cultura para a edificação da vida eclesial e também da cidade terrena, à espera da celeste.” (São João Paulo II – Exortação Apostólica Vita Consecrata nº 6)

 3.Testemunhar os valores da cultura de paz no mundo contemporâneo

Esta breve reflexão sobre alguns pontos que marcaram a história da vida monástica nos coloca diante da perspectiva dos desafios do nosso tempo: a promoção da paz diante dos conflitos, a defesa da vida numa cultura da morte, a mensagem de Jesus Cristo e a vivência dos valores evangélicos em meio a uma sociedade cada vez mais secularizada e marcada pelo relativismo.

Não me coloco, evidentemente, no papel de quem veio apresentar soluções ou respostas prontas. O próprio Papa Francisco alerta: “Não é função do Papa oferecer uma análi­se detalhada e completa da realidade contempo­rânea, mas animo todas as comunidades a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos»” (Evangelii Gaudium nº51). Então, podemos destacar algumas práticas através das quais o monge pode “escutar os sinais dos tempos” e assim agir segundo sua própria identidade de consagrado.

A primeira prática é, sem sombra de dúvida, a oração. A vida de comunhão com Deus é o fundamento da nossa identidade e a fonte do nosso trabalho. Para agir no mundo é essencial ter sempre viva a consciência de que nosso destino transcende a realidade temporal. Isto nos confere um distanciamento de perspectiva, que permite uma análise livre e objetiva das circunstâncias que nos cercam e a força para o engajamento nas obras pelas quais somos chamados a servir. Em resumo, na oração encontramos o discernimento e a força para reconhecer e assumir a cruz de cada dia.

A segunda prática é o testemunho de vida que precede e ilumina o testemunho de ação. Somos e devemos permanecer diferentes. Isto não nos coloca em situação de superioridade, mas de questionamento dos valores correntes na sociedade. Chamado a construir a cidade terrena e, ao mesmo tempo, aspirar à cidade celeste, o monge situa-se em permanente tensão entre o céu que o atrai e a terra onde habita como peregrino.

A terceira prática é a formação permanente. O mundo moderno exige uma formação permanente, e muitas vezes diversificada, para qualquer área profissional. Os monges já o faziam na Idade Média, desdobrando-se em diversas funções e desenvolvendo sua criatividade e empreendedorismo. Não se pode esperar êxito missionário sem uma atuação condizente com o conhecimento e a experiência do nosso tempo.    

A quarta prática é a abertura para reconhecer as necessidades e esperanças do mundo atual e colocar-se em disponibilidade para ir ao encontro delas, conforme se manifestam nas pessoas e entidades, buscando responder questionamentos e preencher vazios onde a verdade do Evangelho ainda não penetrou. Ser verdadeiramente uma “Igreja em saída”, conforme nos ensina o Papa Francisco. Assim como Jesus “não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo” (Fl 2,6-7), nosso cuidado se estende a todas as missões nas quais seja necessário servir, sobretudo aquelas que ninguém possa ou queira assumir.  

“[21] Cingidos, pois, os rins com a fé e a observância das boas ações, guiados pelo Evangelho, trilhemos os seus caminhos para que mereçamos ver aquele que nos chamou para o seu reino. [22] Se queremos habitar na tenda real do acampamento desse reino, é preciso correr pelo caminho das boas obras, de outra forma nunca se há de chegar lá. [23]” (Prólogo da Santa Regra)

 4. Conclusão

Diante de tantos desafios que o mundo hodierno nos propõe, encontramos um vasto campo missionário, sobretudo entre os batizados que necessitam de uma Nova Evangelização. Eles estão em cada esquina das nossas cidades. Não podemos nos fechar em uma pretensa estabilidade já adquirida, mas continuar a obra de nossos predecessores com força e entusiasmo.

Façamo-nos presentes na mídia, na educação e na cultura, no diálogo com outras religiões, na assistência social aos mais carentes e na assistência espiritual aos que buscam um autêntico encontro com Deus. Em todos os ambientes a beleza da vida monástica sempre poderá espalhar sua luz. Mesmo nos espaços onde o monge não pode ter acesso, a força de seu testemunho e a influência de seus ensinamentos vão inspirar aqueles que se deixam guiar por ele, como multiplicadores do anúncio de Cristo ao mundo.

A Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro muito deve à presença e atuação dos filhos de São Bento em nossa cidade. Já que iniciei recordando um pouco da Idade Média, concluo agora com a lembrança de um tempo bem mais próximo, o século passado, ao longo do qual santos e exemplares monges desta Casa continuaram a tradição do Pai São Bento e nos deixaram luminosos exemplos. Sua vivência das ricas tradições da Ordem, aliada à inculturação aos nossos tempos e à nossa realidade, são testemunhos concretos da vida monástica no mundo contemporâneo.   

Que eles sejam nossos intercessores e modelos no amor pela Igreja e pelo nosso povo, ao qual queremos continuar guiando até às verdes pastagens que o Senhor nos prometeu.    

  Obs. - Fonte de consulta: 

Gómez, Ildefonso Maria – Monacato (Verbete do Dicionário Teológico da Vida Consagrada). Paulus, 1994. 

Não houve cópia de nenhum trecho, apenas foram compilados dados históricos que serviram de base para informações contidas neste texto.

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“Vida Monástica: uma vivência a testemunhar os valores da cultura de paz no mundo contemporâneo”

Palestra no Simpósio sobre a Vida Consagrada Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro

28 de outubro de 2014

 

Cardeal Orani João Tempesta,O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

1. Introdução

Falar sobre a vida monástica sempre implica uma reflexão sobre as nossas origens. Não com saudosismo ou ufanismo, mas com o olhar do discípulo-missionário que aprende com experiências passadas para colocá-las em prática no âmbito de sua atuação.  

Impossível citar aqui todas as obras realizadas pelas gerações de monges nossos predecessores, devido à amplitude e ineditismo da atuação deles, nos diversos segmentos em que contribuiram para a Igreja e a sociedade, ao longo dos séculos.

No âmbito missionário, as comunidades monásticas deram à Igreja vinte e cinco papas, além de expoentes da Patrística e Doutores. No serviço à sociedade, apenas para lembrar algumas grandes linhas da atuação dos monges católicos no Ocidente, tivemos confrades que foram, escritores, mestres, copistas, e também agricultores, enfermeiros, famarcêuticos, bibliotecários, construtores e artesãos. Sobretudo, vale destacar a capacidade de aperfeiçoar instrumentos e técnicas que desenvolveram nas suas respectivas áreas de trabalho.

Graças à figura inspirada e inspiradora de São Bento, que o Beato Paulo VI declarou Patrono da Europa, o monacato ocidental ganhou uma Regra que perdura até os nossos dias e uma estruturação que iria contribuir para converter e civilizar aquele continente e estender sua influência até à América e aos demais continentes. Os monges evangelizaram a maior parte da Europa Ocidental e consolidaram a fé pela construção de vários mosteiros nos países evangelizados.

Passados os seis primeiros séculos do florescimento monacal, a partir da disseminação do ideal de São Bento com a fundação das Abadias de Cluny e de Cister, houve períodos críticos, que naturalmente fazem parte da caminhada nas diversas mudanças socioculturais. Em diversos períodos de sua história, o monaquismo se viu diante de situações intra-eclesiais e político-sociais que suscitaram crises de identidade, questionamentos quanto ao seu papel na Igreja, necessidades de voltar às raízes e de promover reformas.

O surgimento das novas ordens mendicantes no século XII, que nascem nas cidades em processo de expansão, arrebata populações e ganha enorme influência nas universidades, enquanto os mosteiros beneditinos e cistercienses encontram-se fora desse eixo, nas regiões rurais. Outras congregações também foram assumindo missões que antes eram exercidas apenas pelos monges.

Além disso, circunstâncias como epidemias, guerras, fechamento de mosteiros por decisões de governos, contribuíram para enfraquecer o monacato em alguns períodos da história. Do século passado podemos destacar as duas Guerras Mundiais, que conturbaram a Europa, e as preocupações com o aggiornamento pós-Vaticano II, que exigiu, não apenas dos monges mas de todos os religiosos, um claro discernimento quanto ao equilíbrio entre a vida de oração e a missão.

Diante de todos esses desafios e dificuldades, a vida monástica soube refletir sobre seu papel na Igreja de seu tempo e reformar-se quando necessário, seja para uma retomada na austeridade dos costumes como para um novo impulso missionário. Nossa presença na Igreja é fruto deste longo percurso, cheio de percalços e também de vitórias.

“No Ocidente, o monaquismo é celebração feita de memória e vigília: memória das maravilhas realizadas por Deus, vigília do cumprimento definitivo da esperança. A mensagem do monaquismo e da vida contemplativa repete, sem cessar, que o primado de Deus é plenitude de sentido e de alegria para a vida humana, pois o homem está feito para Deus e vive inquieto até encontrar n'Ele a paz.” (São João Paulo II – Exortação Apostólica Vita Consecrata nº 27)

2. Oração e trabalho

A primeira e fundamental característica daquele que o Senhor chamou à vida consagrada é “estar no mundo sem ser do mundo”: “Por eles é que eu rogo. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus. Dei-lhes a tua palavra, mas o mundo os odeia, porque eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo” (Jo 17,9.14).

Esta tensão, que em última análise refere-se a toda forma de vida consagrada, tem sua peculiaridade monástica resumida no princípio de São Bento: “Ora et labora”. A primazia da vida de oração possui, na feição beneditina, uma característica marcadamente comunitária, com sua fonte na espiritualidade litúrgica. O segundo aspecto, o do trabalho, diversificou-se nas obras de evangelização, na cultura e nas atividades operacionais destinadas à manutenção do mosteiro e ao desenvolvimento de suas circunvizinhanças.

São Bento certamente não previu todos os desdobramentos das atividades que seus monges iriam exercer nos séculos futuros. Mas uma coisa é certa: elas seriam sempre alicerçadas na vida de oração e na obediência, como diz o Prólogo da Santa Regra: “[40] Portanto, é preciso preparar nossos corações e nossos corpos para militar na santa obediência dos preceitos; [41] e em tudo aquilo que nossa natureza tiver menores possibilidades, roguemos ao Senhor que ordene a sua graça que nos preste auxílio. [42] E, se, fugindo das penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, [43] enquanto é tempo, e ainda estamos neste corpo e é possível realizar todas essas coisas no decorrer desta vida de luz, [44] cumpre correr e agir, agora, de forma que nos aproveite para sempre.”

A fuga mundi para o monge era a consciência de viver em comunhão com Deus, mas trabalhando na construção de um mundo mais humano e fraterno, no qual o Reino de Deus já começava a se instaurar. Mesmo os anacoretas, vivendo na solidão do deserto,  frequentemente recebiam pessoas que desejavam beber de sua sabedoria a experiência contemplativa.

Na vida cenobítica, seguindo a prática da obediência, o monge assumia o trabalho que outros rejeitavam. Na sociedade medieval, que menosprezava o trabalho manual como sendo próprio dos servos, os monges ocuparam os espaços de realização das obras de infraestrutura e produtivas, com o bom desempenho que sua formação proporcionava.

No plano intelectual, dentro de uma sociedade que valorizava as tradições medievais de cavalaria, o monge assumia o trabalho intelectual, que era destinado aos mais fracos. Este trabalho frutificou na excelente formação religiosa e cultural dos monges vocacionados ao sacerdócio, na criação das grandes escolas que prepararam o surgimento das universidades e na hegemonia dos monges em várias áreas do conhecimento da época. Além da teologia, destacavam-se em literatura, história, poesia, matemática, gramática, filologia etc.   

“Na sua forma atual, inspirada especialmente em São Bento, o monaquismo ocidental recolhe a herança de tantos homens e mulheres que, renunciando à vida levada no mundo, procuraram a Deus e a Ele se dedicaram, «sem nada antepor ao amor de Cristo». Também os monges de hoje se esforçam por conciliar harmoniosamente a vida interior e o trabalho , no compromisso evangélico da conversão dos costumes, da obediência, da clausura, e na dedicação assídua à meditação da Palavra (lectio divina), à celebração da liturgia, à oração. Os mosteiros foram e continuam a ser, no coração da Igreja e do mundo, um sinal eloquente de comunhão, um lugar acolhedor para aqueles que buscam Deus e as coisas do espírito, escolas de fé e verdadeiros centros de estudo, diálogo e cultura para a edificação da vida eclesial e também da cidade terrena, à espera da celeste.” (São João Paulo II – Exortação Apostólica Vita Consecrata nº 6)

 3.Testemunhar os valores da cultura de paz no mundo contemporâneo

Esta breve reflexão sobre alguns pontos que marcaram a história da vida monástica nos coloca diante da perspectiva dos desafios do nosso tempo: a promoção da paz diante dos conflitos, a defesa da vida numa cultura da morte, a mensagem de Jesus Cristo e a vivência dos valores evangélicos em meio a uma sociedade cada vez mais secularizada e marcada pelo relativismo.

Não me coloco, evidentemente, no papel de quem veio apresentar soluções ou respostas prontas. O próprio Papa Francisco alerta: “Não é função do Papa oferecer uma análi­se detalhada e completa da realidade contempo­rânea, mas animo todas as comunidades a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos»” (Evangelii Gaudium nº51). Então, podemos destacar algumas práticas através das quais o monge pode “escutar os sinais dos tempos” e assim agir segundo sua própria identidade de consagrado.

A primeira prática é, sem sombra de dúvida, a oração. A vida de comunhão com Deus é o fundamento da nossa identidade e a fonte do nosso trabalho. Para agir no mundo é essencial ter sempre viva a consciência de que nosso destino transcende a realidade temporal. Isto nos confere um distanciamento de perspectiva, que permite uma análise livre e objetiva das circunstâncias que nos cercam e a força para o engajamento nas obras pelas quais somos chamados a servir. Em resumo, na oração encontramos o discernimento e a força para reconhecer e assumir a cruz de cada dia.

A segunda prática é o testemunho de vida que precede e ilumina o testemunho de ação. Somos e devemos permanecer diferentes. Isto não nos coloca em situação de superioridade, mas de questionamento dos valores correntes na sociedade. Chamado a construir a cidade terrena e, ao mesmo tempo, aspirar à cidade celeste, o monge situa-se em permanente tensão entre o céu que o atrai e a terra onde habita como peregrino.

A terceira prática é a formação permanente. O mundo moderno exige uma formação permanente, e muitas vezes diversificada, para qualquer área profissional. Os monges já o faziam na Idade Média, desdobrando-se em diversas funções e desenvolvendo sua criatividade e empreendedorismo. Não se pode esperar êxito missionário sem uma atuação condizente com o conhecimento e a experiência do nosso tempo.    

A quarta prática é a abertura para reconhecer as necessidades e esperanças do mundo atual e colocar-se em disponibilidade para ir ao encontro delas, conforme se manifestam nas pessoas e entidades, buscando responder questionamentos e preencher vazios onde a verdade do Evangelho ainda não penetrou. Ser verdadeiramente uma “Igreja em saída”, conforme nos ensina o Papa Francisco. Assim como Jesus “não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo” (Fl 2,6-7), nosso cuidado se estende a todas as missões nas quais seja necessário servir, sobretudo aquelas que ninguém possa ou queira assumir.  

“[21] Cingidos, pois, os rins com a fé e a observância das boas ações, guiados pelo Evangelho, trilhemos os seus caminhos para que mereçamos ver aquele que nos chamou para o seu reino. [22] Se queremos habitar na tenda real do acampamento desse reino, é preciso correr pelo caminho das boas obras, de outra forma nunca se há de chegar lá. [23]” (Prólogo da Santa Regra)

 4. Conclusão

Diante de tantos desafios que o mundo hodierno nos propõe, encontramos um vasto campo missionário, sobretudo entre os batizados que necessitam de uma Nova Evangelização. Eles estão em cada esquina das nossas cidades. Não podemos nos fechar em uma pretensa estabilidade já adquirida, mas continuar a obra de nossos predecessores com força e entusiasmo.

Façamo-nos presentes na mídia, na educação e na cultura, no diálogo com outras religiões, na assistência social aos mais carentes e na assistência espiritual aos que buscam um autêntico encontro com Deus. Em todos os ambientes a beleza da vida monástica sempre poderá espalhar sua luz. Mesmo nos espaços onde o monge não pode ter acesso, a força de seu testemunho e a influência de seus ensinamentos vão inspirar aqueles que se deixam guiar por ele, como multiplicadores do anúncio de Cristo ao mundo.

A Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro muito deve à presença e atuação dos filhos de São Bento em nossa cidade. Já que iniciei recordando um pouco da Idade Média, concluo agora com a lembrança de um tempo bem mais próximo, o século passado, ao longo do qual santos e exemplares monges desta Casa continuaram a tradição do Pai São Bento e nos deixaram luminosos exemplos. Sua vivência das ricas tradições da Ordem, aliada à inculturação aos nossos tempos e à nossa realidade, são testemunhos concretos da vida monástica no mundo contemporâneo.   

Que eles sejam nossos intercessores e modelos no amor pela Igreja e pelo nosso povo, ao qual queremos continuar guiando até às verdes pastagens que o Senhor nos prometeu.    

  Obs. - Fonte de consulta: 

Gómez, Ildefonso Maria – Monacato (Verbete do Dicionário Teológico da Vida Consagrada). Paulus, 1994. 

Não houve cópia de nenhum trecho, apenas foram compilados dados históricos que serviram de base para informações contidas neste texto.

Cardeal Orani João Tempesta
Autor

Cardeal Orani João Tempesta

Arcebispo da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro