Arquidiocese do Rio de Janeiro

34º 22º

Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 17/05/2024

17 de Maio de 2024

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2º Domingo da Quaresma - Dia 16 de março

1ª Leitura - Gn 12,1-4a
Salmo - 32
2ª Leitura - 2Tm 1,8b-10
Evangelho - Mt 17,1-9

Como afirma esta belíssima oração do formulário da missa deste 2º Domingo da Quaresma, nós queremos render a Deus a nossa ação de graças porque comungamos “no mistério da sua glória” e porque podemos participar “ainda na terra” das “coisas do céu”. A liturgia que celebramos manifesta essa comunhão com o mistério da glória de Deus. Na liturgia da Igreja nós entrevemos as coisas do céu. Este lugar no qual nos reunimos, os gestos, os paramentos sacerdotais, o nosso canto, a Palavra que ouvimos, o incenso que oferecemos a Deus, enfim, tudo aquilo o que a liturgia nos apresenta de forma simbólica nos leva a penetrar nessa realidade misteriosa que nos circunda e a entrevermos já aqui na terra a glória que nos espera no céu. Na Eucaristia, nós nos reunimos ao redor dessa mesa misteriosa; nós comungamos do Cristo glorioso escondido sob o véu do sacramento; nós, que somos terrestres, recebemos um alimento celeste, que vai nos transformando, pouco a pouco, em homens celestes. Neste dia que é plenamente nosso, porque é o Dia do Senhor, nós entrevemos o dia glorioso, sem fim, sem ocaso, pleno de luz, que o Pai prepara para nós nos céus.

Hoje nós comungamos do mistério de Deus revelado na sua Palavra. Daqui a pouco nós vamos comungar do Corpo e Sangue do Senhor, mas agora nós estamos comungando da Palavra. Nós entramos em comunhão com a Palavra de Deus e ela nos faz entrar em comunhão uns com os outros. E a Palavra hoje nos revela que somos chamados por Deus a uma vocação. Paulo nos diz na carta a Timóteo que “Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa”. Também na primeira leitura nós ouvimos que Deus chamou Abrão e o mandou sair da sua terra, deixar seus ídolos, abandonar seu povo e caminhar guiado somente pela promessa de que Deus mostraria a ele uma nova terra na qual devia habitar com a sua posteridade. Deus nos chamou. Ele nos deu uma vocação. E o chamado de Deus para nós, a vocação de Deus para nós é uma vocação à salvação. Deus chamou Abrão para salvá-lo. Deus nos chama, Ele nos vocaciona à salvação.

Deus nos chamou à salvação por causa do pecado original. Nós ouvimos na primeira leitura do domingo passado que Adão pecou juntamente com sua esposa, porque deram ouvido à voz do diabo e abandonaram a Palavra, a ordem que Deus lhes havia dado. Por causa do seu pecado Adão atraiu sobre si, e sobre toda a humanidade que viria dele, a morte, o sofrimento e a inclinação ao mal. Nós nascemos assim, com a nossa natureza marcada pelo sofrimento e pela morte. Nascemos inclinados ao mal. O Pai não nos abandonou a esta triste sorte. O Pai enviou o seu Filho, que assumiu a nossa humanidade. Cristo assumiu a nossa humanidade, ferida pelo pecado, marcada pelo sofrimento e pela morte, para vencer o sofrimento, a morte e o pecado a partir de dentro. Porque somos doentes em virtude do pecado, o Pai enviou para nós a Sua cura, a Sua salvação, o Cristo, homem inteiro, o único homem inteiro que nós conhecemos, porque todos os demais, desde Adão, são marcados pela desordem que o pecado instaurou.

A salvação a qual Deus nos chama, meus irmãos, é então esse processo dinâmico de cura que Deus vai realizando na nossa vida. O batismo foi o início desse processo. Por isso, a quaresma surgiu como um tempo de preparação, de purificação para os que iriam ser batizados. Aos poucos, porém, foi-se percebendo que mesmo os já batizados precisavam a cada ano de um tempo de retorno para Deus, a fim de retomar a consciência de que a salvação vai entrando na nossa casa, na casa do nosso coração, dia-a-dia, na medida em que vamos nos abrindo para que o Senhor nos cure. E a cura de Deus para nós não é tanto dos males visíveis, da doença do nosso corpo. A doença do nosso corpo, por mais terrível que seja, é apenas um sinal exterior de uma doença interior muito mais profunda. Cristo veio para curar as doenças da nossa alma, muito mais terríveis. Essas doenças estão em nós, nós não as vemos e às vezes até nos habituamos com elas e achamos que não somos doentes. A quaresma é este tempo no qual tomamos consciência das nossas enfermidades espirituais e entramos com Cristo num processo de cura, num processo de salvação.

Qual é a salvação de Deus para nós? A salvação é a nossa configuração plena com Cristo. Alguns dizem por aí: Eu já estou salvo! Sim, de fato Cristo já realizou em nosso favor o sacrifício expiatório definitivo. Da parte de Deus a salvação já está consumada. Mas, nos recorda o grande Santo Agostinho: “O Deus que te criou sem ti não te salvará sem ti”. Essa frase encerra uma grande sabedoria, uma grande verdade da nossa fé. Em Cristo já recebemos a salvação, mas precisamos aderir à salvação e aderir à salvação é abrir-me a esse processo dinâmico de cura, de salvação, que consiste na minha busca sincera de configurar-me a Cristo, o homem íntegro.

A Palavra de Deus hoje nos apresenta um itinerário para entrarmos nesse processo de configuração com Cristo. Precisamos, como Abrão, ser obedientes à voz de Deus e sairmos da terra de pecado para caminharmos em direção à terra prometida. Abrão ainda não vê a terra na qual deve entrar. Todavia, Abrão sabe que Deus é fidedigno, por isso ele realiza o primeiro passo, que é sair de terra da idolatria, da terra do pecado. A quaresma é esse tempo em que, como Abrão, saímos da nossa terra para irmos em direção à terra que Deus tem para nós. A nossa terra, à qual estamos tão acomodados, é em sentido espiritual a terra do pecado, a terra das nossas paixões, da qual estamos escravos sem nem sentir. Dói sair desta terra. Dói deixar os antigos costumes. Mas este é o único caminho para entrarmos na terra onde corre leite e mel, na terra da bênção, na terra da promessa que o Senhor tem reservado para nós. Devemos sair desta nossa terra e irmos em direção à terra que o Senhor nos vai dar confiando tão somente na sua Palavra, como fez Abrão, porque o salmo hoje nos diz: “reta é a palavra do Senhor”. O Senhor não nos engana e nem falha nas suas promessas, por isso podemos sem medo sair da nossa terra e irmos em direção à terra que o Senhor prepara para nós.

O Pai deseja que caminhemos rumo à transfiguração que Ele quer realizar na nossa vida. Assim como o Filho se transfigurou diante de Pedro, Tiago e João, o Pai também deseja transfigurar-nos. O coração dessa liturgia da Palavra é este evangelho que acabamos de ouvir. Mateus começa dizendo “Seis dias depois...” Nós nos perguntamos: Seis dias depois de quê? Imediatamente nos voltamos para o capítulo anterior, o capítulo 16 e vemos que lá Jesus faz aos discípulos o primeiro anúncio da sua paixão. Assim nos diz o evangelista: “A partir dessa época, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito por parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morte e ressurgisse no terceiro dia. Pedro, tomando-o à parte, começou a repreendê-lo, dizendo: ‘Deus não permita, Senhor! Isso jamais te acontecerá!’ Ele, porém, voltando-se para Pedro, disse: Vai para trás de mim, Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!”

Os discípulos se escandalizam com o que Jesus lhes diz a respeito do sofrimento que o espera. Pedro não entende e também os outros apóstolos não entendem a linguagem misteriosa da cruz. Os discípulos ficam horrorizados diante de um fim tão atroz que espera o seu mestre. A cruz poderia se tornar para os discípulos um escândalo, ou seja, uma pedra de tropeço. Ao olharem para o crucificado poderiam, ao invés de saírem edificados e prontos a anunciar o evangelho, poderiam ficar tão horrorizados com aquela situação de Jesus que, tropeçando na cruz ao invés de serem edificados por ela, poderiam cair de novo nos seus antigos caminhos. Cristo quer afastar do coração dos discípulos o escândalo e o horror da cruz, revelando-lhes a glória que até então estava oculta aos seus olhos. Jesus quer ainda, com a transfiguração, mostrar aos discípulos a sua verdadeira glória. Nós ouvimos no domingo passado o evangelho das tentações de Cristo no deserto. Uma das tentações do Senhor foi a vanglória. O diabo queria convencer o Cristo a buscar uma glória deste mundo, por isso convidou Jesus a se lançar do pináculo do Templo, para que, diante de todos, os anjos de Deus, como nos diz o salmo 90, aparecessem e levassem Jesus nas suas mãos para que Ele não se ferisse. Se Jesus fizesse isso Ele com certeza receberia uma glória humana muito grande, todos ficariam admirados, mas o fato é que a glória dos homens não é nada. Jesus não estava atrás dessa glória, porque Ele possui afinal, a verdadeira glória. Jesus se transfigura para revelar a Pedro, Tiago e João a sua verdadeira glória.

Essa dupla finalidade da transfiguração atinge em cheio a nossa vida espiritual. Nós também nos escandalizamos da cruz de Jesus. Basta que ela se apresente a nós na sua realidade. Quando a cruz é apenas um objeto de adorno e veneração nas nossas igrejas nós gostamos muito dela. Nós nos aproximamos, tocamos, achamos bonito, rezamos diante do crucifixo e até o beijamos na sexta-feira santa. Mas, quando a cruz de Cristo se torna real, quando sentimos os pregos rasgarem a nossa carne, aí nós nos escandalizamos e perguntamos: Por que eu? Porque esse sofrimento para mim que te sou tão fiel? Ora, justamente porque somos fiéis é que devemos experimentar a cruz. Ela está aqui na igreja não é de enfeite, mas é para nos lembrar que a sorte do Mestre deve ser a sorte dos discípulos: a cruz. Mas, uma cruz que nos conduzirá à glória. Esse é o grande ensinamento de hoje. O segundo é que nós não precisamos mais buscar uma glória vazia. Ao olhar para a glória de Jesus transfigurado nós sabemos que Deus tem uma glória para nós. Nós buscamos incessantemente a glória desse mundo, o aplauso dos homens e isso nos faz tanto mal. Às vezes nos tornamos tão escravos da vanglória que não conseguimos fazer nada que os outros não aprovem. É um sentimento que nos dilacera e que nos deixa completamente vazios. Cristo, que assumiu a forma de servo, que se escondeu dentro de nossa frágil humanidade, que se esconde na Palavra da Escritura, que está oculto sob o véu dos sacramentos, revelou hoje a sua glória para nós, anunciando-nos do alto do Tabor, que não precisamos buscar a nossa própria glória, porque Deus tem reservada para nós a sua glória.

Os discípulos estão tão extasiados com a visão da glória de Cristo que dizem pela boca de Pedro, porque este devia ser o sentimento de todos: “Senhor, é bom estarmos aqui”. É bom para nós, que procuramos uma glória vazia, contemplarmos uma glória que realmente nos preenche, porque fomos feitos para a glória. Uma nuvem luminosa os cobre, lembrando-lhes a nuvem gloriosa que enchia a Tenda da Reunião quando Deus falava com Moisés e diz: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o!” Cristo é o amado. N’Ele nós também somos filhos amados. Ele é o servo obediente, “até a morte”, e nós somos chamados a ser também servos obedientes, que sabem escutar a voz do seu Senhor, do seu Mestre. Ouvir o Cristo é o caminho para a glória. Nós o ouvimos na Palavra da Escritura Sagrada; nós o ouvimos na Tradição da Igreja; nós o ouvimos quando os nossos pastores nos conduzem e nos dirigem uma Palavra que nos orienta e guia até o mesmo Cristo; nós o ouvimos quando aceitamos entrar na intimidade do nosso quarto, do quarto do nosso coração, onde, no dizer de Santo Inácio de Antioquia “existe uma água viva e murmurante que me diz: Vem para o Pai!”

As veste de Cristo ficaram “brancas como a luz”. No paralelo de Marcos se ressalta que as vestes de Cristo ficaram brancas de tão forma que nenhuma lavadeira poderia tê-las alvejado daquela forma. A brancura das vestes de Cristo não era uma brancura terrena, mas uma cor do céu. Cristo apareceu aos discípulos revestido de luz, porque Ele é a luz, nos vai dizer São João, talvez como fruto dessa experiência. Cristo alvejou as nossas vestes no seu sangue. O sangue d’Aquele que é luz alvejou as nossas vestes. A nós cabe agora um esforço para vivermos de acordo com a veste nova recebida. Esse esforço aparece concretamente na quaresma sob a forma do jejum, da oração e da esmola. No domingo passado vimos que o diabo tentou Jesus com a gula, a avareza e a vanglória. Aqui estão as três formas de vencermos as três tentações fundamentais: para nos curar da gula, o jejum; para nos curar da avareza, a esmola; para nos curar da vanglória, a oração. A gula, avareza e a vanglória são tidas por alguns padres do deserto como os três pecados ou pensamentos desordenados principais. Essas seriam as três raízes de todos os demais pecados. Na nossa luta por ganhar a vida nesse mundo somos gulosos, avarentos e buscamos uma falsa glória. É uma tentativa desordenada, um “amor irracional” por nós mesmos que nos leva a autodestruição. A oração, o jejum e a esmola colocam o nosso amor próprio no seu devido lugar, nos ensinando que Deus nos ama mais do que nós mesmos nos amamos e, por isso, aquilo o que ele nos indica como caminho só pode ser infinitamente melhor do que os caminhos que nós mesmos criamos. O caminho de Deus nos conduz a vida. Os nossos caminhos sem Deus nos conduzem à morte. Esse é o nosso caminho quaresmal. Um caminho de cura e purificação que trilhamos na força do Espírito Santo. Um caminho no qual aprendemos o que é amar, imitando a Cristo que nos amou não procurando seu benefício, mas dando-nos a vida. Caminhemos guiados pelo Espírito. Tenhamos em nosso espírito a Palavra do Salmo e peçamos “Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, venha a vossa salvação!” Venha sobre nós a vossa graça Senhor para que possamos caminhar contigo rumo à verdadeira glória que tens reservada para nós no teu Reino.

Liturgia Diária - Tempo do Quaresma

SEGUNDA-FEIRA - 
Dia 17 de março 
1ª Leitura - Dn 9, 4b-10 / Salmo - Sl 78 / Evangelho - Lc 6,36-38

TERÇA-FEIRA - Dia 18 de março
1ª Leitura - Is 1,10.16-20 / Salmo - Sl 49 / Evangelho - Mt 23,1-12

QUARTA-FEIRA - Dia 19 de março
1ª leitura - SM 7,4-5a.12-14a.16 / Salmo - Sl 88 / Evangelho - Lc 2,41-51a

QUINTA-FEIRA - Dia 20 de março
1ª Leitura - Jr 17,5-10 / Salmo - Sl 1 / Evangelho - Lc 16,19-31

SEXTA-FEIRA - Dia 21 de março
1ª Leitura - Gn 37,3-4.12-13a.17b-28 / Salmo - Sl 104 / Evangelho - Mt 521,33-43.45-46

SÁBADO - Dia 22 de março
1ª Leitura - Mq 7,14-15.18-20 / Salmo - Sl 102 / Evangelho - Lc 15,1-3.11-32

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2º Domingo da Quaresma - Dia 16 de março

1ª Leitura - Gn 12,1-4a
Salmo - 32
2ª Leitura - 2Tm 1,8b-10
Evangelho - Mt 17,1-9

Como afirma esta belíssima oração do formulário da missa deste 2º Domingo da Quaresma, nós queremos render a Deus a nossa ação de graças porque comungamos “no mistério da sua glória” e porque podemos participar “ainda na terra” das “coisas do céu”. A liturgia que celebramos manifesta essa comunhão com o mistério da glória de Deus. Na liturgia da Igreja nós entrevemos as coisas do céu. Este lugar no qual nos reunimos, os gestos, os paramentos sacerdotais, o nosso canto, a Palavra que ouvimos, o incenso que oferecemos a Deus, enfim, tudo aquilo o que a liturgia nos apresenta de forma simbólica nos leva a penetrar nessa realidade misteriosa que nos circunda e a entrevermos já aqui na terra a glória que nos espera no céu. Na Eucaristia, nós nos reunimos ao redor dessa mesa misteriosa; nós comungamos do Cristo glorioso escondido sob o véu do sacramento; nós, que somos terrestres, recebemos um alimento celeste, que vai nos transformando, pouco a pouco, em homens celestes. Neste dia que é plenamente nosso, porque é o Dia do Senhor, nós entrevemos o dia glorioso, sem fim, sem ocaso, pleno de luz, que o Pai prepara para nós nos céus.

Hoje nós comungamos do mistério de Deus revelado na sua Palavra. Daqui a pouco nós vamos comungar do Corpo e Sangue do Senhor, mas agora nós estamos comungando da Palavra. Nós entramos em comunhão com a Palavra de Deus e ela nos faz entrar em comunhão uns com os outros. E a Palavra hoje nos revela que somos chamados por Deus a uma vocação. Paulo nos diz na carta a Timóteo que “Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa”. Também na primeira leitura nós ouvimos que Deus chamou Abrão e o mandou sair da sua terra, deixar seus ídolos, abandonar seu povo e caminhar guiado somente pela promessa de que Deus mostraria a ele uma nova terra na qual devia habitar com a sua posteridade. Deus nos chamou. Ele nos deu uma vocação. E o chamado de Deus para nós, a vocação de Deus para nós é uma vocação à salvação. Deus chamou Abrão para salvá-lo. Deus nos chama, Ele nos vocaciona à salvação.

Deus nos chamou à salvação por causa do pecado original. Nós ouvimos na primeira leitura do domingo passado que Adão pecou juntamente com sua esposa, porque deram ouvido à voz do diabo e abandonaram a Palavra, a ordem que Deus lhes havia dado. Por causa do seu pecado Adão atraiu sobre si, e sobre toda a humanidade que viria dele, a morte, o sofrimento e a inclinação ao mal. Nós nascemos assim, com a nossa natureza marcada pelo sofrimento e pela morte. Nascemos inclinados ao mal. O Pai não nos abandonou a esta triste sorte. O Pai enviou o seu Filho, que assumiu a nossa humanidade. Cristo assumiu a nossa humanidade, ferida pelo pecado, marcada pelo sofrimento e pela morte, para vencer o sofrimento, a morte e o pecado a partir de dentro. Porque somos doentes em virtude do pecado, o Pai enviou para nós a Sua cura, a Sua salvação, o Cristo, homem inteiro, o único homem inteiro que nós conhecemos, porque todos os demais, desde Adão, são marcados pela desordem que o pecado instaurou.

A salvação a qual Deus nos chama, meus irmãos, é então esse processo dinâmico de cura que Deus vai realizando na nossa vida. O batismo foi o início desse processo. Por isso, a quaresma surgiu como um tempo de preparação, de purificação para os que iriam ser batizados. Aos poucos, porém, foi-se percebendo que mesmo os já batizados precisavam a cada ano de um tempo de retorno para Deus, a fim de retomar a consciência de que a salvação vai entrando na nossa casa, na casa do nosso coração, dia-a-dia, na medida em que vamos nos abrindo para que o Senhor nos cure. E a cura de Deus para nós não é tanto dos males visíveis, da doença do nosso corpo. A doença do nosso corpo, por mais terrível que seja, é apenas um sinal exterior de uma doença interior muito mais profunda. Cristo veio para curar as doenças da nossa alma, muito mais terríveis. Essas doenças estão em nós, nós não as vemos e às vezes até nos habituamos com elas e achamos que não somos doentes. A quaresma é este tempo no qual tomamos consciência das nossas enfermidades espirituais e entramos com Cristo num processo de cura, num processo de salvação.

Qual é a salvação de Deus para nós? A salvação é a nossa configuração plena com Cristo. Alguns dizem por aí: Eu já estou salvo! Sim, de fato Cristo já realizou em nosso favor o sacrifício expiatório definitivo. Da parte de Deus a salvação já está consumada. Mas, nos recorda o grande Santo Agostinho: “O Deus que te criou sem ti não te salvará sem ti”. Essa frase encerra uma grande sabedoria, uma grande verdade da nossa fé. Em Cristo já recebemos a salvação, mas precisamos aderir à salvação e aderir à salvação é abrir-me a esse processo dinâmico de cura, de salvação, que consiste na minha busca sincera de configurar-me a Cristo, o homem íntegro.

A Palavra de Deus hoje nos apresenta um itinerário para entrarmos nesse processo de configuração com Cristo. Precisamos, como Abrão, ser obedientes à voz de Deus e sairmos da terra de pecado para caminharmos em direção à terra prometida. Abrão ainda não vê a terra na qual deve entrar. Todavia, Abrão sabe que Deus é fidedigno, por isso ele realiza o primeiro passo, que é sair de terra da idolatria, da terra do pecado. A quaresma é esse tempo em que, como Abrão, saímos da nossa terra para irmos em direção à terra que Deus tem para nós. A nossa terra, à qual estamos tão acomodados, é em sentido espiritual a terra do pecado, a terra das nossas paixões, da qual estamos escravos sem nem sentir. Dói sair desta terra. Dói deixar os antigos costumes. Mas este é o único caminho para entrarmos na terra onde corre leite e mel, na terra da bênção, na terra da promessa que o Senhor tem reservado para nós. Devemos sair desta nossa terra e irmos em direção à terra que o Senhor nos vai dar confiando tão somente na sua Palavra, como fez Abrão, porque o salmo hoje nos diz: “reta é a palavra do Senhor”. O Senhor não nos engana e nem falha nas suas promessas, por isso podemos sem medo sair da nossa terra e irmos em direção à terra que o Senhor prepara para nós.

O Pai deseja que caminhemos rumo à transfiguração que Ele quer realizar na nossa vida. Assim como o Filho se transfigurou diante de Pedro, Tiago e João, o Pai também deseja transfigurar-nos. O coração dessa liturgia da Palavra é este evangelho que acabamos de ouvir. Mateus começa dizendo “Seis dias depois...” Nós nos perguntamos: Seis dias depois de quê? Imediatamente nos voltamos para o capítulo anterior, o capítulo 16 e vemos que lá Jesus faz aos discípulos o primeiro anúncio da sua paixão. Assim nos diz o evangelista: “A partir dessa época, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito por parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morte e ressurgisse no terceiro dia. Pedro, tomando-o à parte, começou a repreendê-lo, dizendo: ‘Deus não permita, Senhor! Isso jamais te acontecerá!’ Ele, porém, voltando-se para Pedro, disse: Vai para trás de mim, Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!”

Os discípulos se escandalizam com o que Jesus lhes diz a respeito do sofrimento que o espera. Pedro não entende e também os outros apóstolos não entendem a linguagem misteriosa da cruz. Os discípulos ficam horrorizados diante de um fim tão atroz que espera o seu mestre. A cruz poderia se tornar para os discípulos um escândalo, ou seja, uma pedra de tropeço. Ao olharem para o crucificado poderiam, ao invés de saírem edificados e prontos a anunciar o evangelho, poderiam ficar tão horrorizados com aquela situação de Jesus que, tropeçando na cruz ao invés de serem edificados por ela, poderiam cair de novo nos seus antigos caminhos. Cristo quer afastar do coração dos discípulos o escândalo e o horror da cruz, revelando-lhes a glória que até então estava oculta aos seus olhos. Jesus quer ainda, com a transfiguração, mostrar aos discípulos a sua verdadeira glória. Nós ouvimos no domingo passado o evangelho das tentações de Cristo no deserto. Uma das tentações do Senhor foi a vanglória. O diabo queria convencer o Cristo a buscar uma glória deste mundo, por isso convidou Jesus a se lançar do pináculo do Templo, para que, diante de todos, os anjos de Deus, como nos diz o salmo 90, aparecessem e levassem Jesus nas suas mãos para que Ele não se ferisse. Se Jesus fizesse isso Ele com certeza receberia uma glória humana muito grande, todos ficariam admirados, mas o fato é que a glória dos homens não é nada. Jesus não estava atrás dessa glória, porque Ele possui afinal, a verdadeira glória. Jesus se transfigura para revelar a Pedro, Tiago e João a sua verdadeira glória.

Essa dupla finalidade da transfiguração atinge em cheio a nossa vida espiritual. Nós também nos escandalizamos da cruz de Jesus. Basta que ela se apresente a nós na sua realidade. Quando a cruz é apenas um objeto de adorno e veneração nas nossas igrejas nós gostamos muito dela. Nós nos aproximamos, tocamos, achamos bonito, rezamos diante do crucifixo e até o beijamos na sexta-feira santa. Mas, quando a cruz de Cristo se torna real, quando sentimos os pregos rasgarem a nossa carne, aí nós nos escandalizamos e perguntamos: Por que eu? Porque esse sofrimento para mim que te sou tão fiel? Ora, justamente porque somos fiéis é que devemos experimentar a cruz. Ela está aqui na igreja não é de enfeite, mas é para nos lembrar que a sorte do Mestre deve ser a sorte dos discípulos: a cruz. Mas, uma cruz que nos conduzirá à glória. Esse é o grande ensinamento de hoje. O segundo é que nós não precisamos mais buscar uma glória vazia. Ao olhar para a glória de Jesus transfigurado nós sabemos que Deus tem uma glória para nós. Nós buscamos incessantemente a glória desse mundo, o aplauso dos homens e isso nos faz tanto mal. Às vezes nos tornamos tão escravos da vanglória que não conseguimos fazer nada que os outros não aprovem. É um sentimento que nos dilacera e que nos deixa completamente vazios. Cristo, que assumiu a forma de servo, que se escondeu dentro de nossa frágil humanidade, que se esconde na Palavra da Escritura, que está oculto sob o véu dos sacramentos, revelou hoje a sua glória para nós, anunciando-nos do alto do Tabor, que não precisamos buscar a nossa própria glória, porque Deus tem reservada para nós a sua glória.

Os discípulos estão tão extasiados com a visão da glória de Cristo que dizem pela boca de Pedro, porque este devia ser o sentimento de todos: “Senhor, é bom estarmos aqui”. É bom para nós, que procuramos uma glória vazia, contemplarmos uma glória que realmente nos preenche, porque fomos feitos para a glória. Uma nuvem luminosa os cobre, lembrando-lhes a nuvem gloriosa que enchia a Tenda da Reunião quando Deus falava com Moisés e diz: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o!” Cristo é o amado. N’Ele nós também somos filhos amados. Ele é o servo obediente, “até a morte”, e nós somos chamados a ser também servos obedientes, que sabem escutar a voz do seu Senhor, do seu Mestre. Ouvir o Cristo é o caminho para a glória. Nós o ouvimos na Palavra da Escritura Sagrada; nós o ouvimos na Tradição da Igreja; nós o ouvimos quando os nossos pastores nos conduzem e nos dirigem uma Palavra que nos orienta e guia até o mesmo Cristo; nós o ouvimos quando aceitamos entrar na intimidade do nosso quarto, do quarto do nosso coração, onde, no dizer de Santo Inácio de Antioquia “existe uma água viva e murmurante que me diz: Vem para o Pai!”

As veste de Cristo ficaram “brancas como a luz”. No paralelo de Marcos se ressalta que as vestes de Cristo ficaram brancas de tão forma que nenhuma lavadeira poderia tê-las alvejado daquela forma. A brancura das vestes de Cristo não era uma brancura terrena, mas uma cor do céu. Cristo apareceu aos discípulos revestido de luz, porque Ele é a luz, nos vai dizer São João, talvez como fruto dessa experiência. Cristo alvejou as nossas vestes no seu sangue. O sangue d’Aquele que é luz alvejou as nossas vestes. A nós cabe agora um esforço para vivermos de acordo com a veste nova recebida. Esse esforço aparece concretamente na quaresma sob a forma do jejum, da oração e da esmola. No domingo passado vimos que o diabo tentou Jesus com a gula, a avareza e a vanglória. Aqui estão as três formas de vencermos as três tentações fundamentais: para nos curar da gula, o jejum; para nos curar da avareza, a esmola; para nos curar da vanglória, a oração. A gula, avareza e a vanglória são tidas por alguns padres do deserto como os três pecados ou pensamentos desordenados principais. Essas seriam as três raízes de todos os demais pecados. Na nossa luta por ganhar a vida nesse mundo somos gulosos, avarentos e buscamos uma falsa glória. É uma tentativa desordenada, um “amor irracional” por nós mesmos que nos leva a autodestruição. A oração, o jejum e a esmola colocam o nosso amor próprio no seu devido lugar, nos ensinando que Deus nos ama mais do que nós mesmos nos amamos e, por isso, aquilo o que ele nos indica como caminho só pode ser infinitamente melhor do que os caminhos que nós mesmos criamos. O caminho de Deus nos conduz a vida. Os nossos caminhos sem Deus nos conduzem à morte. Esse é o nosso caminho quaresmal. Um caminho de cura e purificação que trilhamos na força do Espírito Santo. Um caminho no qual aprendemos o que é amar, imitando a Cristo que nos amou não procurando seu benefício, mas dando-nos a vida. Caminhemos guiados pelo Espírito. Tenhamos em nosso espírito a Palavra do Salmo e peçamos “Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, venha a vossa salvação!” Venha sobre nós a vossa graça Senhor para que possamos caminhar contigo rumo à verdadeira glória que tens reservada para nós no teu Reino.

Liturgia Diária - Tempo do Quaresma

SEGUNDA-FEIRA - 
Dia 17 de março 
1ª Leitura - Dn 9, 4b-10 / Salmo - Sl 78 / Evangelho - Lc 6,36-38

TERÇA-FEIRA - Dia 18 de março
1ª Leitura - Is 1,10.16-20 / Salmo - Sl 49 / Evangelho - Mt 23,1-12

QUARTA-FEIRA - Dia 19 de março
1ª leitura - SM 7,4-5a.12-14a.16 / Salmo - Sl 88 / Evangelho - Lc 2,41-51a

QUINTA-FEIRA - Dia 20 de março
1ª Leitura - Jr 17,5-10 / Salmo - Sl 1 / Evangelho - Lc 16,19-31

SEXTA-FEIRA - Dia 21 de março
1ª Leitura - Gn 37,3-4.12-13a.17b-28 / Salmo - Sl 104 / Evangelho - Mt 521,33-43.45-46

SÁBADO - Dia 22 de março
1ª Leitura - Mq 7,14-15.18-20 / Salmo - Sl 102 / Evangelho - Lc 15,1-3.11-32

Padre Fábio Siqueira
Autor

Padre Fábio Siqueira

Vice-diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida