Arquidiocese do Rio de Janeiro

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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 10/05/2024

10 de Maio de 2024

O Dia Mundial da Paz e a cultura do cuidado

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O Dia Mundial da Paz e a cultura do cuidado

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28/12/2020 13:01

O Dia Mundial da Paz e a cultura do cuidado 0

28/12/2020 13:01

Como já se tornou tradição, no dia 1º de janeiro – solenidade da Mãe de Deus, Maria Santíssima, conclusão da oitava de Natal, dia da circuncisão e do nome de Jesus, junto com a confraternização universal – o Santo Padre dirige ao mundo uma mensagem convidando a todos os homens e mulheres de boa vontade ao cultivo da Paz. Em 2021, reflete sobre a cultura do cuidado como caminho para a paz. Pode ser uma bela inspiração para os novos prefeitos e vereadores que assumem a grave responsabilidade pelo bem comum de suas cidades neste ano, após as eleições e diplomação. Abaixo temos alguns tópicos da mensagem, mas ela mesma deve ser lida e meditada na íntegra.

         O Papa Francisco inicia cumprimentando as legítimas autoridades constituídas, relembrando a grande crise sanitária de 2020 com a pandemia da Covid-19 e seu desdobrar-se positivo (o cuidado com o próximo) e negativo (o ávido jogo de interesses desumanos). Depois, em mais oito tópicos, desenvolve sua mensagem sob a ótica do cuidado. Sigamos, pois, o Santo Padre. Diz ele: “O ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenômeno plurissetorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, econômica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incômodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao setor privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis” (n. 1). Quem de nós, com um mínimo de humanidade que possua, não se sente impelido a agradecer ao Papa Francisco essa lembrança exortatória? Demonstra ele, assim, que o legítimo sucessor de Pedro quer ser o pai comum de todos ou o servo dos servos de Deus que se coloca a serviço dos crentes e não crentes.

         Isso posto, o Santo Padre se volta à cultura do cuidado que está na origem da vocação humana, conforme vemos no início do livro do Gênesis a destacar a relação do homem (‘adam, daí Adão) com a terra (‘adamah) e com o próximo. O homem tem a missão de cultivar e guardar a criação, obra divina a ele confiada (cf. Gn 2,8.15). Mais: “O nascimento de Caim e Abel gera uma história de irmãos, cuja relação em termos de tutela ou custódia será vivida negativamente por Caim. Depois de ter assassinado o seu irmão Abel, a Deus que lhe pergunta por ele, Caim responde: ‘Sou, porventura, guarda do meu irmão?’ (Gn 4,9). Responde o Papa em sua mensagem: “Com certeza!” Caim é o ‘guarda’ de seu irmão. Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual de que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros” (n. 2).

Nesse contexto, Deus se faz presente como grande guardião da dignidade humana de cada um (a) de seus filhos(as) e não os (as) abandona nem mesmo quando erram, como é o caso de Caim (cf. Gn 4,15). Tem ainda especial predileção pelos pobres, ou seja, pelos mais fragilizados e injustiçados socialmente (cf. Gn 2,1-3; Lv 25,4; Dt 15,4; Am 2,6-8; 8; Is 58; Sl 34,7; 113,7-8). O Novo Testamento manifesta a mesma linha de pensamento na vida e no ministério de Jesus, nosso Senhor, que, na sua Encarnação, revela o auge de seu amor pela humanidade (cf. Jo 3,16) e se anuncia como enviado aos pobres e libertador dos oprimidos (cf. Lc 4,18). Ele se aproxima dos mais necessitados na alma e no corpo, cura-os, perdoa e liberta. É o verdadeiro Bom Pastor (cf. Jo 10,11-18; Ez 34,1-31) ou o Bom Samaritano a inclinar-se ante as feridas do próximo (cf. Lc 10,30-37). Seu grande amor O leva a entregar-se, na cruz por nós, fazendo com que seus discípulos seguissem Seu exemplo, de modo a não haver necessitados entre os primeiros cristãos (cf. At 4,34-35). Missão que a Igreja, a seu modo, continua a manter até hoje em suas obras caritativas e sociais: asilos de idosos, lares de crianças, hospitais, arrecadação e distribuição de alimentos, remédios, roupas etc. (cf. n. 3-5).

         Passa o Papa a demonstrar, então, que a Doutrina Social da Igreja está toda alicerçada na cultura do cuidado. Eis suas palavras: “A diakonia das origens, enriquecida pela reflexão dos Padres e animada, ao longo dos séculos, pela caridade operosa de tantas luminosas testemunhas da fé, tornou-se o coração pulsante da doutrina social da Igreja, proporcionando a todas as pessoas de boa vontade um precioso patrimônio de princípios, critérios e indicações, donde se pode haurir a ‘gramática’ do cuidado: a promoção da dignidade de toda a pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação” (n. 6). Disso decorre a inviolabilidade da pessoa humana a ser defendida, nunca explorada; essa dignidade repercute sobre toda a humanidade que compartilha da nobreza e da fragilidade de criatura humana, como nos demonstrou, de modo especial, a Covid-19: “estamos todos no mesmo barco”; isso inspira à solidariedade que “ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus” (idem). É nesse contexto que entra também a salvaguarda do planeta, nossa casa comum.

         Estes pontos são, de acordo com o Papa, a bússola do rumo comum que “os responsáveis das Organizações internacionais e dos Governos, dos mundos econômico e científico, da comunicação social e das instituições educativas” (n. 7) estão chamados a seguir, pois só ela pode, de fato, irmanar-nos na busca de um mundo mais justo e fraterno no qual a dignidade de todos e cada um seja devidamente valorizada e, por conseguinte, as desigualdades sociais sensivelmente minoradas. Isso que deve ser visto em nível micro ou das pessoas e pequenas organizações vale também no relacionamento das nações entre si em vista da defesa dos direitos humanos fundamentais. “Deve ser recordado também o respeito pelo direito humanitário, sobretudo nesta fase em que se sucedem, sem interrupção, conflitos e guerras. Infelizmente, muitas regiões e comunidades já não se recordam dos tempos em que viviam em paz e segurança. Numerosas cidades tornaram-se um epicentro da insegurança: os seus habitantes fatigam a manter os seus ritmos normais, porque são atacados e bombardeados indiscriminadamente por explosivos, artilharia e armas ligeiras. As crianças não podem estudar. Homens e mulheres não podem trabalhar para sustentar as famílias. A carestia lança raízes em lugares onde antes era desconhecida. As pessoas são obrigadas a fugir, deixando para trás não só as suas casas, mas também a sua história familiar e as raízes culturais. As causas de conflitos são muitas, mas o resultado é sempre o mesmo: destruição e crise humanitária. Temos de parar e interrogar-nos: O que foi que levou a sentir o conflito como algo normal no mundo? E, sobretudo, como converter o nosso coração e mudar a nossa mentalidade para procurar verdadeiramente a paz na solidariedade e na fraternidade?” (idem). Propõe o Papa que o dinheiro gasto com armas nucleares e outras despesas militares não essenciais sejam destinados a um Fundo Mundial e aplicado na aquisição e distribuição de remédios, eliminação da fome, de outros problemas humanitários urgentes, da crise climática etc. (ibidem).

         Convida, então, Francisco a uma educação na cultura do cuidado. Esta há de ter seu início na família, “núcleo natural e fundamental da sociedade, onde se aprende a viver em relação e no respeito mútuo” (n. 8) em relação com outras forças vivas da sociedade tais como como “a escola e a universidade e analogamente, em certos aspetos, os sujeitos da comunicação social” (idem) dentro do respeito a cada pessoa, em seu contexto cultural, linguístico e religioso, de forma aberta e inclusiva. Afinal, “as religiões em geral, e os líderes religiosos em particular, podem desempenhar um papel insubstituível na transmissão aos fiéis e à sociedade dos valores da solidariedade, do respeito pelas diferenças, do acolhimento e do cuidado dos irmãos mais frágeis. Recordo, a propósito, as palavras que o Papa Paulo VI proferiu no Parlamento do Uganda em 1969: ‘Não temais a Igreja; esta honra-vos, educa-vos cidadãos honestos e leais, não fomenta rivalidades nem divisões, procura promover a liberdade sadia, a justiça social, a paz; se tem alguma preferência é pelos pobres, a educação dos pequeninos e do povo, o cuidado dos atribulados e desvalidos” (Discurso aos Deputados e Senadores do Uganda. Kampala 1º de agosto de 1969, apud n. 8).

         A título de conclusão, o Santo Padre, no número 9, como que sintetiza a sua longa Mensagem com as seguintes palavras: “A cultura do cuidado, enquanto compromisso comum, solidário e participativo para proteger e promover a dignidade e o bem de todos, enquanto disposição a interessar-se, a prestar atenção, disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco, constitui uma via privilegiada para a construção da paz. ‘Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com criatividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro’ (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 225). Neste tempo, em que a barca da humanidade, sacudida pela tempestade da crise, avança com dificuldade à procura de um horizonte mais calmo e sereno, o leme da dignidade da pessoa humana e a ‘bússola’ dos princípios sociais fundamentais podem consentir-nos de navegar com um rumo seguro e comum. Como cristãos, mantemos o olhar fixo na Virgem Maria, Estrela do Mar e Mãe da Esperança. Colaboremos, todos juntos, a fim de avançar para um novo horizonte de amor e paz, de fraternidade e solidariedade, de apoio mútuo e acolhimento recíproco. Não cedamos à tentação de nos desinteressarmos dos outros, especialmente dos mais frágeis, não nos habituemos a desviar o olhar, mas empenhemo-nos cada dia concretamente por ‘formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros’ (idem, n. 1).

         Que esta Mensagem penetre o mais íntimo do nosso ser e nos faça, na prática, semeadores da paz e da cultura do cuidado a começar pelos que estão à nossa volta. Inspire-nos o exemplo do Bom Samaritano, que é, em última análise, o próprio Cristo a se abaixar sobre as nossas feridas da alma e do corpo e curá-las. Sigamos este exemplo com a graça de Deus e a intercessão da Virgem Maria e de São José, cujo ano estamos vivendo, e colheremos muitos frutos para a maior glória de Deus e o bem da humanidade.
 
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ



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O Dia Mundial da Paz e a cultura do cuidado

28/12/2020 13:01

Como já se tornou tradição, no dia 1º de janeiro – solenidade da Mãe de Deus, Maria Santíssima, conclusão da oitava de Natal, dia da circuncisão e do nome de Jesus, junto com a confraternização universal – o Santo Padre dirige ao mundo uma mensagem convidando a todos os homens e mulheres de boa vontade ao cultivo da Paz. Em 2021, reflete sobre a cultura do cuidado como caminho para a paz. Pode ser uma bela inspiração para os novos prefeitos e vereadores que assumem a grave responsabilidade pelo bem comum de suas cidades neste ano, após as eleições e diplomação. Abaixo temos alguns tópicos da mensagem, mas ela mesma deve ser lida e meditada na íntegra.

         O Papa Francisco inicia cumprimentando as legítimas autoridades constituídas, relembrando a grande crise sanitária de 2020 com a pandemia da Covid-19 e seu desdobrar-se positivo (o cuidado com o próximo) e negativo (o ávido jogo de interesses desumanos). Depois, em mais oito tópicos, desenvolve sua mensagem sob a ótica do cuidado. Sigamos, pois, o Santo Padre. Diz ele: “O ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenômeno plurissetorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, econômica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incômodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao setor privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis” (n. 1). Quem de nós, com um mínimo de humanidade que possua, não se sente impelido a agradecer ao Papa Francisco essa lembrança exortatória? Demonstra ele, assim, que o legítimo sucessor de Pedro quer ser o pai comum de todos ou o servo dos servos de Deus que se coloca a serviço dos crentes e não crentes.

         Isso posto, o Santo Padre se volta à cultura do cuidado que está na origem da vocação humana, conforme vemos no início do livro do Gênesis a destacar a relação do homem (‘adam, daí Adão) com a terra (‘adamah) e com o próximo. O homem tem a missão de cultivar e guardar a criação, obra divina a ele confiada (cf. Gn 2,8.15). Mais: “O nascimento de Caim e Abel gera uma história de irmãos, cuja relação em termos de tutela ou custódia será vivida negativamente por Caim. Depois de ter assassinado o seu irmão Abel, a Deus que lhe pergunta por ele, Caim responde: ‘Sou, porventura, guarda do meu irmão?’ (Gn 4,9). Responde o Papa em sua mensagem: “Com certeza!” Caim é o ‘guarda’ de seu irmão. Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual de que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros” (n. 2).

Nesse contexto, Deus se faz presente como grande guardião da dignidade humana de cada um (a) de seus filhos(as) e não os (as) abandona nem mesmo quando erram, como é o caso de Caim (cf. Gn 4,15). Tem ainda especial predileção pelos pobres, ou seja, pelos mais fragilizados e injustiçados socialmente (cf. Gn 2,1-3; Lv 25,4; Dt 15,4; Am 2,6-8; 8; Is 58; Sl 34,7; 113,7-8). O Novo Testamento manifesta a mesma linha de pensamento na vida e no ministério de Jesus, nosso Senhor, que, na sua Encarnação, revela o auge de seu amor pela humanidade (cf. Jo 3,16) e se anuncia como enviado aos pobres e libertador dos oprimidos (cf. Lc 4,18). Ele se aproxima dos mais necessitados na alma e no corpo, cura-os, perdoa e liberta. É o verdadeiro Bom Pastor (cf. Jo 10,11-18; Ez 34,1-31) ou o Bom Samaritano a inclinar-se ante as feridas do próximo (cf. Lc 10,30-37). Seu grande amor O leva a entregar-se, na cruz por nós, fazendo com que seus discípulos seguissem Seu exemplo, de modo a não haver necessitados entre os primeiros cristãos (cf. At 4,34-35). Missão que a Igreja, a seu modo, continua a manter até hoje em suas obras caritativas e sociais: asilos de idosos, lares de crianças, hospitais, arrecadação e distribuição de alimentos, remédios, roupas etc. (cf. n. 3-5).

         Passa o Papa a demonstrar, então, que a Doutrina Social da Igreja está toda alicerçada na cultura do cuidado. Eis suas palavras: “A diakonia das origens, enriquecida pela reflexão dos Padres e animada, ao longo dos séculos, pela caridade operosa de tantas luminosas testemunhas da fé, tornou-se o coração pulsante da doutrina social da Igreja, proporcionando a todas as pessoas de boa vontade um precioso patrimônio de princípios, critérios e indicações, donde se pode haurir a ‘gramática’ do cuidado: a promoção da dignidade de toda a pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação” (n. 6). Disso decorre a inviolabilidade da pessoa humana a ser defendida, nunca explorada; essa dignidade repercute sobre toda a humanidade que compartilha da nobreza e da fragilidade de criatura humana, como nos demonstrou, de modo especial, a Covid-19: “estamos todos no mesmo barco”; isso inspira à solidariedade que “ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus” (idem). É nesse contexto que entra também a salvaguarda do planeta, nossa casa comum.

         Estes pontos são, de acordo com o Papa, a bússola do rumo comum que “os responsáveis das Organizações internacionais e dos Governos, dos mundos econômico e científico, da comunicação social e das instituições educativas” (n. 7) estão chamados a seguir, pois só ela pode, de fato, irmanar-nos na busca de um mundo mais justo e fraterno no qual a dignidade de todos e cada um seja devidamente valorizada e, por conseguinte, as desigualdades sociais sensivelmente minoradas. Isso que deve ser visto em nível micro ou das pessoas e pequenas organizações vale também no relacionamento das nações entre si em vista da defesa dos direitos humanos fundamentais. “Deve ser recordado também o respeito pelo direito humanitário, sobretudo nesta fase em que se sucedem, sem interrupção, conflitos e guerras. Infelizmente, muitas regiões e comunidades já não se recordam dos tempos em que viviam em paz e segurança. Numerosas cidades tornaram-se um epicentro da insegurança: os seus habitantes fatigam a manter os seus ritmos normais, porque são atacados e bombardeados indiscriminadamente por explosivos, artilharia e armas ligeiras. As crianças não podem estudar. Homens e mulheres não podem trabalhar para sustentar as famílias. A carestia lança raízes em lugares onde antes era desconhecida. As pessoas são obrigadas a fugir, deixando para trás não só as suas casas, mas também a sua história familiar e as raízes culturais. As causas de conflitos são muitas, mas o resultado é sempre o mesmo: destruição e crise humanitária. Temos de parar e interrogar-nos: O que foi que levou a sentir o conflito como algo normal no mundo? E, sobretudo, como converter o nosso coração e mudar a nossa mentalidade para procurar verdadeiramente a paz na solidariedade e na fraternidade?” (idem). Propõe o Papa que o dinheiro gasto com armas nucleares e outras despesas militares não essenciais sejam destinados a um Fundo Mundial e aplicado na aquisição e distribuição de remédios, eliminação da fome, de outros problemas humanitários urgentes, da crise climática etc. (ibidem).

         Convida, então, Francisco a uma educação na cultura do cuidado. Esta há de ter seu início na família, “núcleo natural e fundamental da sociedade, onde se aprende a viver em relação e no respeito mútuo” (n. 8) em relação com outras forças vivas da sociedade tais como como “a escola e a universidade e analogamente, em certos aspetos, os sujeitos da comunicação social” (idem) dentro do respeito a cada pessoa, em seu contexto cultural, linguístico e religioso, de forma aberta e inclusiva. Afinal, “as religiões em geral, e os líderes religiosos em particular, podem desempenhar um papel insubstituível na transmissão aos fiéis e à sociedade dos valores da solidariedade, do respeito pelas diferenças, do acolhimento e do cuidado dos irmãos mais frágeis. Recordo, a propósito, as palavras que o Papa Paulo VI proferiu no Parlamento do Uganda em 1969: ‘Não temais a Igreja; esta honra-vos, educa-vos cidadãos honestos e leais, não fomenta rivalidades nem divisões, procura promover a liberdade sadia, a justiça social, a paz; se tem alguma preferência é pelos pobres, a educação dos pequeninos e do povo, o cuidado dos atribulados e desvalidos” (Discurso aos Deputados e Senadores do Uganda. Kampala 1º de agosto de 1969, apud n. 8).

         A título de conclusão, o Santo Padre, no número 9, como que sintetiza a sua longa Mensagem com as seguintes palavras: “A cultura do cuidado, enquanto compromisso comum, solidário e participativo para proteger e promover a dignidade e o bem de todos, enquanto disposição a interessar-se, a prestar atenção, disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco, constitui uma via privilegiada para a construção da paz. ‘Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com criatividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro’ (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 225). Neste tempo, em que a barca da humanidade, sacudida pela tempestade da crise, avança com dificuldade à procura de um horizonte mais calmo e sereno, o leme da dignidade da pessoa humana e a ‘bússola’ dos princípios sociais fundamentais podem consentir-nos de navegar com um rumo seguro e comum. Como cristãos, mantemos o olhar fixo na Virgem Maria, Estrela do Mar e Mãe da Esperança. Colaboremos, todos juntos, a fim de avançar para um novo horizonte de amor e paz, de fraternidade e solidariedade, de apoio mútuo e acolhimento recíproco. Não cedamos à tentação de nos desinteressarmos dos outros, especialmente dos mais frágeis, não nos habituemos a desviar o olhar, mas empenhemo-nos cada dia concretamente por ‘formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros’ (idem, n. 1).

         Que esta Mensagem penetre o mais íntimo do nosso ser e nos faça, na prática, semeadores da paz e da cultura do cuidado a começar pelos que estão à nossa volta. Inspire-nos o exemplo do Bom Samaritano, que é, em última análise, o próprio Cristo a se abaixar sobre as nossas feridas da alma e do corpo e curá-las. Sigamos este exemplo com a graça de Deus e a intercessão da Virgem Maria e de São José, cujo ano estamos vivendo, e colheremos muitos frutos para a maior glória de Deus e o bem da humanidade.
 
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ



Cardeal Orani João Tempesta
Autor

Cardeal Orani João Tempesta

Arcebispo da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro