Arquidiocese do Rio de Janeiro

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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 19/05/2024

19 de Maio de 2024

A velhice na Bíblia: algumas pistas para hoje

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A velhice na Bíblia: algumas pistas para hoje

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14/02/2013 16:51 - Atualizado em 14/02/2013 17:01

A velhice na Bíblia: algumas pistas para hoje 0

14/02/2013 16:51 - Atualizado em 14/02/2013 17:01

A velhice na Bíblia: algumas pistas para hoje / Arqrio

O perceber-se envelhecer, constatar o decair das próprias forças e a conseqüente aproximação da morte sempre foi um problema para o ser humano de todos os tempos. Algumas culturas e civilizações lidaram com esta questão de maneira mais tranqüila, outras menos. A cultura judaico-cristã, sem camuflar a dramaticidade do processo de caducidade das forças do ser humano e o sentimento de impotência que se lhe segue, refletiu sobre esta experiência tão fundamental e apontou algumas pistas de solução a partir de sua fé.Partindo do pressuposto que lemos o texto bíblico desde o lugar da fé cristã e da teologia, cremos deixar esclarecido qual é o viés da nossa reflexão. Trata-se aqui não tanto de procurar descrições dos processos psicológicos e biológicos que caracterizam o processo de envelhecimento e sua experiência. Mas sim de procurar destacar algumas implicações éticas e religiosas decorrentes deste processo que o povo bíblico trouxe à luz incorporou ao seu patrimônio de fé no Deus de Israel.

1. A idade entendida como etapa da vida ou como idade madura, maturidade São os dois sentidos em que o termo quase sempre aparece no AT. Tal como os outros povos da antiguidade, também o judaísmo professa um grande respeito aos anciãos (Cf. Lev 19,32:" Levanta-te diante dos cabelos brancos e s– cheio de respeito por um velho"). A razão desse respeito é que o velho é mediação para o temor que se deve ter ao próprio Deus, pois continua o mesmo v. 32 do cap 19 do Levítico:"... assim que terás o temor de teu Deus". Além disso, é consenso em Israel que os velhos possuem a sabedoria e a prudência (Cf,. Jó15,10; Eclo 6,34s; 25, 4-6).

Por isso não é estranho que sempre hajam desempenhado no meio do povo uma função de direção e aconselhamento. As cãs do velho, que são o sinal patente de sua idade avançada, não devem ser motivo de riso, mas de respeito, pois são um distintivo de honra. Assim diz o Livro dos Provérbios: "A força é o adorno dos jovens, os cabelos brancos são a honra dos velhos." (Prov. 20,29)No NT, aparece claro que o homem não tem nenhum poder ou influência sobre sua idade física, já que ela é um dom do criador. E é o próprio Jesus que diz, em Mt 6,27//Lc 12,25:" Qual de vós pode, à força de agitar-se, acrescentar um minuto que seja àduração de sua vida?" Diante do tempo que passa, portanto, e faz sentir seus efeitos sobre o corpo, a mente e a potência, o homem é chamado a crescer em maturidade, em virtudes, em graça e sabedoria até atingir a estatura (que em grego é designada pelo mesmo termo que "idade") do próprio Cristo (Cf. Ef 4,13).São Paulo resume magistralmente esse processo paradoxal que deve ser o do cristão, ouseja daquele que vive da vida nova "em Cristo".

Ao mesmo tempo que constata acaducidade física, a decadência corpórea, exorta os cristãos de Corinto a investir no crescimento de seu "homem interior", entendido aí como a vida espiritual de cada indivíduo ao mesmo tempo que do corpo de Cristo. Vale a pena transcrever suas palavras cheias de Espírito: "Eis porque não perdemos coragem e mesmo se, em nós, o homem exterior caminha para sua ruína, o homem interior se renova a cada dia...Nosso objetivo não é o que se vê mas o que não se vê; o que se vê é provisório, mas o que não se vê éeterno." (2 Cor 4,16-18). O que Paulo quer descrever aqui é a expressão da mutação que se opera no ser humano ordiná rio como conseqüência da ação criadora da presença do Senhor. A velhice e o envelhecimento, portanto, segundo Paulo, não devem ser problemas para o cristão, que em Cristo é uma nova criatura e sobre quem a caducidade do tempo "kronos" não tem mais poder, já que este entrou numa nova ordem.

O kairos" que não passa e tem a irradiação e a luz do próprio Cristo Ressuscitado que já não morre e vive para sempre. A unidade de medida da idade, portanto, para o cristão, passa por outros critérios que não os que levam o envelhecimento a ser temido como conduzindo à idade indesejada.

2. No Antigo Testamento ainda se percebe uma visão positiva da velhice como bênção, plenitude e cumprimento cheio e fecundo dos objetivos da vida. Isto é verdade sobretudo da velhice do justo, ou seja, daquele homem que viveu segundo o coração e o sonho de Deus. De Abraão, diz-se que "morreu em ditosa velhice (aos 175 anos) idosa e cumulada. E foi reunido aos seus" (Gn 25,8); Jó justo provado pela mão do Senhor, já em meio aos sofrimentos que sobre ele se abatem, e "apresentando sua causa diante de Deus" (Jó5,8), recebe d'Este a promessa :"Entrarás na tumba em robusta velhice (Jó5,26). Os salmos estão cheios de súplicas e ao mesmo tempo promessas de Deus em relação à velhice dos justos. O velho que sente suas forças declinarem suplica: "Não me rejeites na minha velhice; quando minhas forças declinam, não me abandones"...Apesar de minhas cãs e minha velhice, não me abandones, Deus. (Sl 71,9; 18).

E Deus promete, cheio de generosidade:" O justo crescerá como a palmeira e mesmo velho, ele frutificará ainda, permanece cheio de seiva e de verdor proclamando o direito do Senhor..." (Sl 92,13-16); o Deus de Israel é louvado como Aquele que " reclama tua vida do túmulo e a coroa de fidelidade e ternura. Ele nutre de bens tua velhice e tu rejuvenesces como a guia" (Sl 103, 3-4). E na fidelidade do Seu amor por Israel, Deus afirma: "Até vossa velhice serei o mesmo, até vossos cabelos brancos, sou eu que vos sustentarei..." (Is 46, 4). Para Israel, portanto, Deus não está submetido ao desgaste físico do homem na sua velhice. O tempo não tem domínio sobre ele , pois Ele é Senhor também do tempo, e ao justo faz participar da sua vida que não morre, cumula a velhice de frutos e transforma aidade avançada na mais tenra juventude.

3. O que vem sendo dito da velhice humana na Bíblia encontra uma "nuance" especialmente delicada no caso da mulher. Se a velhice é dramática tica para o homem, na mulher ela se agrega a um elemento mais de extrema seriedade para o auto-respeito desta mulher como pessoa e sua integração na sociedade e na comunidade. A mulher velha não é mais capaz de conceber, ou seja, não pode mais dar filhos ao povo e assim tornar concreta e real sua pertença ao povo eleito e sentir-se e experimentar-se abençoada por Deus. Quando no seu percurso vital, a experiência da maternidade já aconteceu, essa mulher já encontra sua vida justificada.

Cheia e rodeada pelos frutos do seu ventre, pode agora viver dignamente a esterilidade de sua idade e condição, tendo cumprido com sua missão. No entanto, a Bíblia nos relata o caso de algumas mulheres que viveram o imenso drama de não gerarem filhos e se perceberem numa idade onde já não poderiam jamais gerá-los. Sara, mulher de Abraão era idosa, avançada em anos e não havia gerado filhos para Abraão. Eis, porém que o Senhor interfere em meio a sua velhice e a desorganiza com a promessa da vinda inesperada de uma criança, o filho da promessa. Sara estava na porta da tenda quando Deus falou com Abraão e lhe disse "eis que Sara tua mulher ter um filho" (Gn 18,10). Sara, realista a respeito das coisas e de si própria, conhecia a decadência de seu corpo e era madura a respeito de suas impossibilidades. Sua reação foi prorromper num riso incré’dulo, dizendo para si mesma:"Velha e gasta como estou, serei ainda capaz de gozar e ter prazer? E meu senhor é to velho!" (Gn 18,12) .

Deus ouve o riso de Sara equestiona sua incredulidade e a questão por ela colocada. E demonstra que não há nada demasiado prodigioso para Aquele que é o Senhor da vida e conhece os segredos de todas as gerações. Fecundando o ventre velho e estéril de Sara, mostra seu senhorio ali onde avida, humanamente, seria impossível. Nasce Isaac, cujo nome é um jogo de palavras com o riso incrédulo de Sara. Isaac, cuja significação precisa é: "Que Deus ria, sorria, seja benévolo". Sobremaneira benévolo é esse Deus que faz Abraão reencontrar sua potência viril aos cem anos de idade e Sara re-conhecer o prazer de fazer amor e gerar um filho aos noventa anos.

A Bíblia conhece e fala sobre outros casos de mulheres velhas e estéreis que dão à luz. É o caso de Ana, mãe de Samuel, cuja oração é ouvida pelo Senhor que lhe dá um filho, o qual ela consagra para sempre ao Deus que eliminou a maldição de sua esterilidade. (Cf. 1 Sam 1,2 - 2,21) E igualmente o caso da mulher de Manoah, a quem o anjo do Senhor aparece eanuncia que da sua esterilidade será concebido um filho, que será consagrado a Deus e salvará Israel da mão dos filisteus. Seu nome será Sansão, que significa "sol" na derivação do termo hebraico (Jz 13,24-16,31).No Novo Testamento o caso prototípico da velhice fecundada pelo Senhor é o de Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Diz o evangelho de Lucas que Zacarias e Isabel já estavam velhos e avançados em idade e não tinham filhos.

Eis senão quando o anjo do Senhor aparece a Zacarias e lhe diz que sua mulher, Isabel teria um filho a quem seria dado onome de João, que significa :" o Senhor faz graça". Os sinais que acompanhariam o nascimento do menino seriam de alegria e coisas boas para muitos Pois ele seria cheio do Espírito Santo desde o seio de sua mãe, antes mesmo do seu nascimento, trazendo muitos dos filhos de Israel de volta ao seu Deus. E é assim que da velhice envergonhada de Isabel e Zacarias nasce o grande João Batista, precursor do Messias, maior dos profetas, que não temia dizer a verdade a reis e sabia reconhecer Aquele que era maior do que ele e de quem não era digno de desatar a correia das sandá lias. A exclamação alegre e agradecida de Isabel, a nós reportada pelo evangelista Lucas dá bem a medida da luz que foi na idade avançada dessa mulher marcada pela esterilidade a chegada desse vida nova e abençoada: " Eis o que fez por mim o Senhor no tempo em que ele lançou os olhos sobre mim para pôr fim ao que fazia minha vergonha diante dos homens." (Cf. Lc 1,25).4.

O Deus da Bíblia não parece medir-se por critérios cronológicos. Para Ele, portanto, a velhice não é o tempo onde a vida se recolhe e não pode mais brilhar, deixar sinais e dar frutos visíveis e maduros. Mas, pelo contrário, Ele parece comprazer-se em gerar e fazer brotar os líderes de seu povo dos ventres considerados extintos das mulheres velhas e estéreis. Segundo o Deus da Bíblia, velhice não é impedimento para nada, sequer para nascer. É a grande revelação que espanta o incrédulo doutor da Lei Nicodemos, que vai encontrar Jesus no meio da noite para perguntar-lhe sobre as coisas de Deus. Surpreendese com essa palavra dita à queima-roupa :" Ninguém, se não nascer da água e do Espírito, pode ver o Reino de Deus" e tem que retrucar: "Como pode um homem nascer sendo velho? Pode entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?" (Cf. Jo) 3, 3-

4.Nicodemos talvez tenha custado a entender que haviam chegado os tempos messiânicos, aqueles pelos quais o povo esperava há tanto tempo e que iam tornar todas as coisas novas. Nesses tempos , que Deus finalmente inaugurara com a chegada de Jesus de Nazaré’ está acontecendo o que os profetas tinham anunciado :" Velhos e velhas se sentarão ainda nas praças de Jerusalém’ cada um com o bastão na mão, tão avançada será sua idade" (Cf. Zc 8,4). " ...vossos velhos terão sonhos; vossos jovens terão visões..." (Jl 2,28) Seja chegando em paz a uma idade avançada porque não haverá mais dor nem luto nem morte prematura sobre a terra; seja sendo tomados de "frenesis" e entusiasmos que os fazem sonhar e delirar. Os velhos são tão centrais nos tempos messiânicos como os jovens.

5. A velhice, portanto, dentro da visão da Bíblia e da teologia cristã, não é equiparada ecomparada ao apagar da vida, da beleza e do amor. Não significa o fim das potencialidades e término das perspectivas de prazer, de alegria e de fecundidade. Pelo contrário, se em Cristo e em seu Espírito, todos são nova criatura, é de se esperar ver muitas vezes Deus escolhendo velhos e velhas para neles fazer acontecer uma fecundidade muito mais patente que nos jovens, para a partir deles fazer ressoar no mundo revelações muito mais espantosas e revoluciona rias que a partir daqueles que se encontram no vigor da mocidade. As palavras do Cristo Ressuscitado a Pedro no final do Evangelho de João podem resumir e abrir perspectivas atuais para todos nós a partir destas reflexões sobre a velhice. Após perguntar a Pedro por três vezes se o amava e ouvir por três vezes a resposta positiva do apóstolo, Jesus Cristo lhe diz estas misteriosas palavras:"Quando eras jovem, tu mesmo te cingias e ias para onde querias. Quando fores velho, estender as mãos e outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres." (Jo 21,18).

Talvez o segredo do enorme potencial que se esconde sob a aparente impotência e decadência da velhice esteja na possibilidade dos velhos de hoje e de amanhã recusarem-se a cingir-se a si mesmos. Ou seja, recusarem-se a desempenhar o papel subalterno e desprezado que a sociedade moderna, em sua mentalidade utilitária e imediatista, preparou e previu para eles. Talvez o segredo de começarem a acontecer coisas surpreendentes e maravilhosas com aqueles para quem a vida parece estar no seu declínio se encontre na capacidade que eles e elas tiverem de deixar-se conduzir por outro, por esse Outro que a revelação bíblica nos diz que é capaz de subverter todas as categorias, fazendo os velhos terem sonhos e renascerem quando parecem estar no momento de morrer. Esse que se compraz em confundir os prazos e expectativas dos homens e suscita líderes e libertadores para seu povo dos ventres velhos e estéreis de mulheres que a sociedade já havia condenado à perpétua esterilidade é capaz de fazer também homens e mulheres, hoje como sempre, gemerem de prazer e voltarem a conhecer o gozo. E compreenderem enfim que foram feitos, definitivamente, para a vida enão para a morte. Vida em plenitude e vida que não se acaba.

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A velhice na Bíblia: algumas pistas para hoje

14/02/2013 16:51 - Atualizado em 14/02/2013 17:01

O perceber-se envelhecer, constatar o decair das próprias forças e a conseqüente aproximação da morte sempre foi um problema para o ser humano de todos os tempos. Algumas culturas e civilizações lidaram com esta questão de maneira mais tranqüila, outras menos. A cultura judaico-cristã, sem camuflar a dramaticidade do processo de caducidade das forças do ser humano e o sentimento de impotência que se lhe segue, refletiu sobre esta experiência tão fundamental e apontou algumas pistas de solução a partir de sua fé.Partindo do pressuposto que lemos o texto bíblico desde o lugar da fé cristã e da teologia, cremos deixar esclarecido qual é o viés da nossa reflexão. Trata-se aqui não tanto de procurar descrições dos processos psicológicos e biológicos que caracterizam o processo de envelhecimento e sua experiência. Mas sim de procurar destacar algumas implicações éticas e religiosas decorrentes deste processo que o povo bíblico trouxe à luz incorporou ao seu patrimônio de fé no Deus de Israel.

1. A idade entendida como etapa da vida ou como idade madura, maturidade São os dois sentidos em que o termo quase sempre aparece no AT. Tal como os outros povos da antiguidade, também o judaísmo professa um grande respeito aos anciãos (Cf. Lev 19,32:" Levanta-te diante dos cabelos brancos e s– cheio de respeito por um velho"). A razão desse respeito é que o velho é mediação para o temor que se deve ter ao próprio Deus, pois continua o mesmo v. 32 do cap 19 do Levítico:"... assim que terás o temor de teu Deus". Além disso, é consenso em Israel que os velhos possuem a sabedoria e a prudência (Cf,. Jó15,10; Eclo 6,34s; 25, 4-6).

Por isso não é estranho que sempre hajam desempenhado no meio do povo uma função de direção e aconselhamento. As cãs do velho, que são o sinal patente de sua idade avançada, não devem ser motivo de riso, mas de respeito, pois são um distintivo de honra. Assim diz o Livro dos Provérbios: "A força é o adorno dos jovens, os cabelos brancos são a honra dos velhos." (Prov. 20,29)No NT, aparece claro que o homem não tem nenhum poder ou influência sobre sua idade física, já que ela é um dom do criador. E é o próprio Jesus que diz, em Mt 6,27//Lc 12,25:" Qual de vós pode, à força de agitar-se, acrescentar um minuto que seja àduração de sua vida?" Diante do tempo que passa, portanto, e faz sentir seus efeitos sobre o corpo, a mente e a potência, o homem é chamado a crescer em maturidade, em virtudes, em graça e sabedoria até atingir a estatura (que em grego é designada pelo mesmo termo que "idade") do próprio Cristo (Cf. Ef 4,13).São Paulo resume magistralmente esse processo paradoxal que deve ser o do cristão, ouseja daquele que vive da vida nova "em Cristo".

Ao mesmo tempo que constata acaducidade física, a decadência corpórea, exorta os cristãos de Corinto a investir no crescimento de seu "homem interior", entendido aí como a vida espiritual de cada indivíduo ao mesmo tempo que do corpo de Cristo. Vale a pena transcrever suas palavras cheias de Espírito: "Eis porque não perdemos coragem e mesmo se, em nós, o homem exterior caminha para sua ruína, o homem interior se renova a cada dia...Nosso objetivo não é o que se vê mas o que não se vê; o que se vê é provisório, mas o que não se vê éeterno." (2 Cor 4,16-18). O que Paulo quer descrever aqui é a expressão da mutação que se opera no ser humano ordiná rio como conseqüência da ação criadora da presença do Senhor. A velhice e o envelhecimento, portanto, segundo Paulo, não devem ser problemas para o cristão, que em Cristo é uma nova criatura e sobre quem a caducidade do tempo "kronos" não tem mais poder, já que este entrou numa nova ordem.

O kairos" que não passa e tem a irradiação e a luz do próprio Cristo Ressuscitado que já não morre e vive para sempre. A unidade de medida da idade, portanto, para o cristão, passa por outros critérios que não os que levam o envelhecimento a ser temido como conduzindo à idade indesejada.

2. No Antigo Testamento ainda se percebe uma visão positiva da velhice como bênção, plenitude e cumprimento cheio e fecundo dos objetivos da vida. Isto é verdade sobretudo da velhice do justo, ou seja, daquele homem que viveu segundo o coração e o sonho de Deus. De Abraão, diz-se que "morreu em ditosa velhice (aos 175 anos) idosa e cumulada. E foi reunido aos seus" (Gn 25,8); Jó justo provado pela mão do Senhor, já em meio aos sofrimentos que sobre ele se abatem, e "apresentando sua causa diante de Deus" (Jó5,8), recebe d'Este a promessa :"Entrarás na tumba em robusta velhice (Jó5,26). Os salmos estão cheios de súplicas e ao mesmo tempo promessas de Deus em relação à velhice dos justos. O velho que sente suas forças declinarem suplica: "Não me rejeites na minha velhice; quando minhas forças declinam, não me abandones"...Apesar de minhas cãs e minha velhice, não me abandones, Deus. (Sl 71,9; 18).

E Deus promete, cheio de generosidade:" O justo crescerá como a palmeira e mesmo velho, ele frutificará ainda, permanece cheio de seiva e de verdor proclamando o direito do Senhor..." (Sl 92,13-16); o Deus de Israel é louvado como Aquele que " reclama tua vida do túmulo e a coroa de fidelidade e ternura. Ele nutre de bens tua velhice e tu rejuvenesces como a guia" (Sl 103, 3-4). E na fidelidade do Seu amor por Israel, Deus afirma: "Até vossa velhice serei o mesmo, até vossos cabelos brancos, sou eu que vos sustentarei..." (Is 46, 4). Para Israel, portanto, Deus não está submetido ao desgaste físico do homem na sua velhice. O tempo não tem domínio sobre ele , pois Ele é Senhor também do tempo, e ao justo faz participar da sua vida que não morre, cumula a velhice de frutos e transforma aidade avançada na mais tenra juventude.

3. O que vem sendo dito da velhice humana na Bíblia encontra uma "nuance" especialmente delicada no caso da mulher. Se a velhice é dramática tica para o homem, na mulher ela se agrega a um elemento mais de extrema seriedade para o auto-respeito desta mulher como pessoa e sua integração na sociedade e na comunidade. A mulher velha não é mais capaz de conceber, ou seja, não pode mais dar filhos ao povo e assim tornar concreta e real sua pertença ao povo eleito e sentir-se e experimentar-se abençoada por Deus. Quando no seu percurso vital, a experiência da maternidade já aconteceu, essa mulher já encontra sua vida justificada.

Cheia e rodeada pelos frutos do seu ventre, pode agora viver dignamente a esterilidade de sua idade e condição, tendo cumprido com sua missão. No entanto, a Bíblia nos relata o caso de algumas mulheres que viveram o imenso drama de não gerarem filhos e se perceberem numa idade onde já não poderiam jamais gerá-los. Sara, mulher de Abraão era idosa, avançada em anos e não havia gerado filhos para Abraão. Eis, porém que o Senhor interfere em meio a sua velhice e a desorganiza com a promessa da vinda inesperada de uma criança, o filho da promessa. Sara estava na porta da tenda quando Deus falou com Abraão e lhe disse "eis que Sara tua mulher ter um filho" (Gn 18,10). Sara, realista a respeito das coisas e de si própria, conhecia a decadência de seu corpo e era madura a respeito de suas impossibilidades. Sua reação foi prorromper num riso incré’dulo, dizendo para si mesma:"Velha e gasta como estou, serei ainda capaz de gozar e ter prazer? E meu senhor é to velho!" (Gn 18,12) .

Deus ouve o riso de Sara equestiona sua incredulidade e a questão por ela colocada. E demonstra que não há nada demasiado prodigioso para Aquele que é o Senhor da vida e conhece os segredos de todas as gerações. Fecundando o ventre velho e estéril de Sara, mostra seu senhorio ali onde avida, humanamente, seria impossível. Nasce Isaac, cujo nome é um jogo de palavras com o riso incrédulo de Sara. Isaac, cuja significação precisa é: "Que Deus ria, sorria, seja benévolo". Sobremaneira benévolo é esse Deus que faz Abraão reencontrar sua potência viril aos cem anos de idade e Sara re-conhecer o prazer de fazer amor e gerar um filho aos noventa anos.

A Bíblia conhece e fala sobre outros casos de mulheres velhas e estéreis que dão à luz. É o caso de Ana, mãe de Samuel, cuja oração é ouvida pelo Senhor que lhe dá um filho, o qual ela consagra para sempre ao Deus que eliminou a maldição de sua esterilidade. (Cf. 1 Sam 1,2 - 2,21) E igualmente o caso da mulher de Manoah, a quem o anjo do Senhor aparece eanuncia que da sua esterilidade será concebido um filho, que será consagrado a Deus e salvará Israel da mão dos filisteus. Seu nome será Sansão, que significa "sol" na derivação do termo hebraico (Jz 13,24-16,31).No Novo Testamento o caso prototípico da velhice fecundada pelo Senhor é o de Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Diz o evangelho de Lucas que Zacarias e Isabel já estavam velhos e avançados em idade e não tinham filhos.

Eis senão quando o anjo do Senhor aparece a Zacarias e lhe diz que sua mulher, Isabel teria um filho a quem seria dado onome de João, que significa :" o Senhor faz graça". Os sinais que acompanhariam o nascimento do menino seriam de alegria e coisas boas para muitos Pois ele seria cheio do Espírito Santo desde o seio de sua mãe, antes mesmo do seu nascimento, trazendo muitos dos filhos de Israel de volta ao seu Deus. E é assim que da velhice envergonhada de Isabel e Zacarias nasce o grande João Batista, precursor do Messias, maior dos profetas, que não temia dizer a verdade a reis e sabia reconhecer Aquele que era maior do que ele e de quem não era digno de desatar a correia das sandá lias. A exclamação alegre e agradecida de Isabel, a nós reportada pelo evangelista Lucas dá bem a medida da luz que foi na idade avançada dessa mulher marcada pela esterilidade a chegada desse vida nova e abençoada: " Eis o que fez por mim o Senhor no tempo em que ele lançou os olhos sobre mim para pôr fim ao que fazia minha vergonha diante dos homens." (Cf. Lc 1,25).4.

O Deus da Bíblia não parece medir-se por critérios cronológicos. Para Ele, portanto, a velhice não é o tempo onde a vida se recolhe e não pode mais brilhar, deixar sinais e dar frutos visíveis e maduros. Mas, pelo contrário, Ele parece comprazer-se em gerar e fazer brotar os líderes de seu povo dos ventres considerados extintos das mulheres velhas e estéreis. Segundo o Deus da Bíblia, velhice não é impedimento para nada, sequer para nascer. É a grande revelação que espanta o incrédulo doutor da Lei Nicodemos, que vai encontrar Jesus no meio da noite para perguntar-lhe sobre as coisas de Deus. Surpreendese com essa palavra dita à queima-roupa :" Ninguém, se não nascer da água e do Espírito, pode ver o Reino de Deus" e tem que retrucar: "Como pode um homem nascer sendo velho? Pode entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?" (Cf. Jo) 3, 3-

4.Nicodemos talvez tenha custado a entender que haviam chegado os tempos messiânicos, aqueles pelos quais o povo esperava há tanto tempo e que iam tornar todas as coisas novas. Nesses tempos , que Deus finalmente inaugurara com a chegada de Jesus de Nazaré’ está acontecendo o que os profetas tinham anunciado :" Velhos e velhas se sentarão ainda nas praças de Jerusalém’ cada um com o bastão na mão, tão avançada será sua idade" (Cf. Zc 8,4). " ...vossos velhos terão sonhos; vossos jovens terão visões..." (Jl 2,28) Seja chegando em paz a uma idade avançada porque não haverá mais dor nem luto nem morte prematura sobre a terra; seja sendo tomados de "frenesis" e entusiasmos que os fazem sonhar e delirar. Os velhos são tão centrais nos tempos messiânicos como os jovens.

5. A velhice, portanto, dentro da visão da Bíblia e da teologia cristã, não é equiparada ecomparada ao apagar da vida, da beleza e do amor. Não significa o fim das potencialidades e término das perspectivas de prazer, de alegria e de fecundidade. Pelo contrário, se em Cristo e em seu Espírito, todos são nova criatura, é de se esperar ver muitas vezes Deus escolhendo velhos e velhas para neles fazer acontecer uma fecundidade muito mais patente que nos jovens, para a partir deles fazer ressoar no mundo revelações muito mais espantosas e revoluciona rias que a partir daqueles que se encontram no vigor da mocidade. As palavras do Cristo Ressuscitado a Pedro no final do Evangelho de João podem resumir e abrir perspectivas atuais para todos nós a partir destas reflexões sobre a velhice. Após perguntar a Pedro por três vezes se o amava e ouvir por três vezes a resposta positiva do apóstolo, Jesus Cristo lhe diz estas misteriosas palavras:"Quando eras jovem, tu mesmo te cingias e ias para onde querias. Quando fores velho, estender as mãos e outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres." (Jo 21,18).

Talvez o segredo do enorme potencial que se esconde sob a aparente impotência e decadência da velhice esteja na possibilidade dos velhos de hoje e de amanhã recusarem-se a cingir-se a si mesmos. Ou seja, recusarem-se a desempenhar o papel subalterno e desprezado que a sociedade moderna, em sua mentalidade utilitária e imediatista, preparou e previu para eles. Talvez o segredo de começarem a acontecer coisas surpreendentes e maravilhosas com aqueles para quem a vida parece estar no seu declínio se encontre na capacidade que eles e elas tiverem de deixar-se conduzir por outro, por esse Outro que a revelação bíblica nos diz que é capaz de subverter todas as categorias, fazendo os velhos terem sonhos e renascerem quando parecem estar no momento de morrer. Esse que se compraz em confundir os prazos e expectativas dos homens e suscita líderes e libertadores para seu povo dos ventres velhos e estéreis de mulheres que a sociedade já havia condenado à perpétua esterilidade é capaz de fazer também homens e mulheres, hoje como sempre, gemerem de prazer e voltarem a conhecer o gozo. E compreenderem enfim que foram feitos, definitivamente, para a vida enão para a morte. Vida em plenitude e vida que não se acaba.

Maria Clara Lucchetti Bingemer
Autor

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio