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Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, 10/05/2024

10 de Maio de 2024

Francisco e Kirill, o grande encontro!

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24/02/2016 00:00 - Atualizado em 25/02/2016 17:16

Francisco e Kirill, o grande encontro! 0

24/02/2016 00:00 - Atualizado em 25/02/2016 17:16

O encontro do Papa Francisco com o Patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa de Moscou, em Cuba, rendeu grande repercussão na imprensa, que deu ao povo uma noção do conteúdo da Declaração Conjunta por eles realizada no histórico encontro.

Um trecho de notícia veiculada pouco antes do acontecimento bem demonstra a pauta do evento: “A perseguição aos cristãos irá dominar a agenda do encontro, que deve acontecer por aproximadamente três horas. À luz da situação no Oriente Médio e na África, as duas igrejas decidiram pôr de lado as discordâncias existentes entre elas e unirem os seus esforços no intuito de salvar os cristãos do genocídio. O Patriarca e o Papa também deverão discutir o abandono dos valores cristãos, o que pode ser observado na Europa atualmente. Uma declaração conjunta deverá ser assinada no final do encontro” (notícia veiculada pela Unissinos). Foi esse o clima do texto que ao final do encontro foi assinado.

Seria interessante refletir sobre essa aproximação histórica, importante entre católicos romanos e ortodoxos, uma vez que eles têm veneráveis tradições e vasta literatura teológica dos primeiros séculos do Cristianismo, historiando – com base em Dom Estêvão Bettencourt, OSB. História da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2012, p. 184-190 – um pouco da separação ocorrida de modo forte em 1054, por razões históricas, culturais e teológicas, mas que tem dado grandes passos de aproximação com o diálogo ecumênico muito fomentado pelo Concílio Vaticano II (1962-65), na Unitatis Redintegratio.

Os antecedentes do cisma (separação sem negação da fé) possuem seus pontos, que bem mostram como no passado houve grandes diferenças entre romanos e gregos. Os gregos eram tidos como grandes intelectuais no campo da filosofia, da ciência e da arte, de modo que grande parte da elaboração das verdades de fé, nos primeiros séculos, se deu no Oriente até o Concílio de Constantinopla III (680/1). Daí o olhar depreciativo aos romanos e aos bárbaros invasores de Roma, como grosseiros e sem cultura. No entanto, os latinos tinham também suas qualidades, especialmente na prática da disciplina e do Direito, por isso tinham suas restrições ao aspecto metafísico (ou seja, além do físico) dos gregos. Surgia, assim, uma rivalidade dificilmente contornável.

Outro ponto é a língua. Até o século IV os documentos da Igreja, em Roma, eram redigidos em grego, bem como a liturgia era celebrada nessa língua, restando para nós até hoje o Kyrie eleison, ainda rezado ou cantado em algumas Missas no Ato Penitencial. No entanto, do século V em diante, o grego vai desaparecendo para dar lugar ao latim, dialeto do Lácio, região romana. Nova dificuldade na relação Ocidente e Oriente, dado que em Bizâncio não se valorizava o latim, e em Roma havia nítido e claro um distanciamento do idioma grego. Isso possibilitou mal-entendidos de ambas as partes, especialmente no que tocava aos documentos dos Concílios a necessitarem de intérpretes nem sempre fiéis aos originais. Aliás as dificuldades de traduções e suas interpretações ainda hoje causam dificuldades.

Também a liturgia ocidental e oriental tinham (e têm) diferentes tradições. Assim, o calendário da Páscoa é diferente, os latinos jejuavam no sábado, mas os gregos não; os ocidentais usam pão sem fermento para a Eucaristia, e os orientais, pão fermentado; o celibato é muito caro aos latinos, mas não ao clero diocesano oriental; o uso da barba é irrelevante aos latinos, mas muito estimado pelos orientais... Questões disciplinares e não de fé ou moral em si, mas que não havia grande interesse em debater ou, pior, só eram levadas a debate em tempos de controvérsias e animosidade, não produzindo frutos positivos, mas, sim, amargos.

Do ponto de vista histórico, em 380 surgiu nova celeuma: Bizâncio que sempre fora depreciada pelos romanos, tornou-se a capital do império ou a “nova Roma”. Sob o aspecto religioso, essa mudança marcou negativamente os latinos, pois a sé episcopal bizantina não tinha sido – como Roma, Jerusalém, Antioquia, Alexandria, – fundada por um Apóstolo, mas pelo Bispo Metrófanes, no início do século IV (315-325), como sufragânea da diocese de Heracléia.

Mesmo assim, naquele tempo de controvérsias históricas e teológicas, os bizantinos passaram a ter dificuldades de reconhecer a primazia de Roma no plano da fé, ou seja, o primado de Pedro ou do Papa, pois Constantinopla (cidade de Constantino) vivia o esplendor de uma grande corte imperial. No plano temporal, os imperadores eram chamados de Pontífices Máximos e, por isso, muito se imiscuíam nas doutrinas religiosas das igrejas orientais, mantendo-as sob seu controle, o que favorecia as doutrinas heréticas (negadoras das verdades de fé) e, por conseguinte, a contraposição ao Bispo de Roma, o Papa.

O problema teve fortes desdobramentos, de modo que alguns imperadores foram hostis contra os Papas: Justino I mandou buscar à força o Papa Virgílio em Roma a fim de tentar obrigá-lo a subscrever normas religiosas baixadas pelo imperador, por volta de 550; Constante II fez o mesmo com o Papa Martinho I que se opusera, em Roma (649) ao monotelitismo (doutrina que admitia em Jesus duas naturezas, mas uma só vontade, a divina), defendido pelo imperador; Justiniano II mandou prender em Roma o Papa Sérgio I por ele não reconhecer as inovações do Concílio Trulano (692), entre outros fatos dessa natureza que levavam cada vez mais a separar orientais e ocidentais.

A situação, já dramática, agravou-se ainda mais quando foi criado, no Ocidente, o “Sacro Império Romano da nação dos Francos”, tendo seu primeiro imperador, Carlos Magno, no ano 800, que recebeu a coroa pelas mãos do Papa Leão III. O Oriente viu nisso uma afronta, pois se só há um Deus e uma Igreja, o imperador – que reina em nome de Deus, diziam –, só pode ser único também. Era a unidade desfeita. Afinal, pensavam os orientais: como pode o Papa coroar um bárbaro e colocá-lo à frente do Sacro Império?

Em 858, Inácio, patriarca de Constantinopla, foi deposto por adversários políticos e tomou o seu lugar o patriarca Fócio, visto com bons olhos pelo imperador. Em cinco dias recebeu todas as ordens sacras e assumiu o posto sem que o patriarca anterior tivesse falecido ou renunciado. O Papa não reconheceu o novo patriarca que, desgostoso, levantou críticas aos cristãos do Ocidente. O Papa Nicolau I mandou missionários ocidentais à Bulgária, o que causou ainda mais animosidade, pois o rei Boris, recém-batizado, ainda não sabia se devia obediência ao Papa ou ao Patriarca. Também a mesma Bulgária decidiu se ocidentalizar, de modo a deixar Constantinopla ainda mais constrangida. Nesse contexto o patriarca, Fócio, enviou carta aos bispos orientais contra a atitude dos “bárbaros ocidentais”, bem como acusava Roma de ter alterado a fórmula de fé com o Filioque.

Esta fórmula diz que o Espírito Santo “procede do Pai e do Filho”, ao passo que os orientais afirmam que o mesmo Espírito “procede do Pai pelo Filho”. Ora, essa questão ficou mais acirrada nos séculos IX a XI, até a ruptura duradoura de 1054. Antes, porém, o Concílio de Constantinopla, reunido em 867, depôs Nicolau I, que morreu logo depois, e Fócio foi destituído por uma revolução palaciana. Inácio assume a Sé patriarcal. Em 869/870, foi celebrado o 8º Concílio Ecumênico de Constantinopla sob a direção de três legados do Papa. Fócio foi excomungado e a comunhão com Roma foi restabelecida, mas por pouco tempo. Sim, pois em 879, Fócio reassumiu a Sé de Constantinopla e, no mesmo ano, convocou um Sínodo que rejeitou aquele feito em 869/70 com a presença dos legados papais. Os latinos foram hostilizados e os gregos consideraram esse Sínodo o oitavo Ecumênico, mas os romanos não. Faltava a autorização do Papa. Com a morte de Fócio, a relação com Roma foi reatada mesmo em meio aos abalos e discórdias que vimos.

No século X, tempo difícil na vida da Igreja, houve a criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a dinastia dos Otos (962), que deixou os bizantinos muito irritados, pois parecia repetir a ação de 800, quando Carlos Magno foi coroado imperador. Ora, as relações com Roma, que já eram frias, se tornaram novamente tensas. Para mais agravar a questão, o Papa Bento VIII, em 1014, introduziu no Credo da Igreja de Roma o Filioque, a pedido do imperador Henrique II.

Ora, o patriarca Sérgio, de Constantinopla, reagiu espalhando os escritos de Fócio sobre a questão. Em 1043, uma nova celeuma se dá: Miguel Celulário, hostil a Roma, mandou fechar as igrejas dos latinos, confiscou mosteiros destes e lhes fez acusação por usarem pães ázimos nas Missas. Em meio à confusão, um funcionário do Império chegou a pisotear as hóstias dos latinos, dizendo que não estavam consagradas. Diante de tudo isso, o Cardeal Humberto da Silva Cândida, homem erudito, escreveu uma refutação com o título de Diálogo, acusando os gregos de seguirem a doutrina de Macedônio, negadora da divindade do Espírito Santo.

Contra as ideias de Celulário, Constantino IX, imperador bizantino, desejava ter boas relações com o Papa Leão IX; por isso, em 1054, aquele pontífice enviou a Constantinopla uma legação de três prelados. Constantino IX mandou queimar, como gesto de aproximação, teses anti-romanas, a fim de favorecer o diálogo. Celulário, porém, se mostrou intransigente e proibiu os latinos de celebrarem a Santa Missa na igreja de Santa Sofia. Ora, a isso os legados papais agiram com extrema severidade: deixaram, na presença do clero e do povo, sob o altar, uma Bula de excomunhão contra Celulário e seus seguidores, e retornaram para Roma.

Pensavam que o patriarca voltasse atrás, mas ele não o fez. Ao contrário, ele convocou o povo a revoltas contra o Imperador, acusando-o de cúmplice dos romanos, levando Constantino IX a reagir com violência. O patriarca não se intimidou e lançou excomunhão sobre o Papa e seus legados, além de convidar os Bispos do Oriente a seguir seu exemplo. Teve êxito grande em seu pedido, mas, em 1057, ao ambicionar o trono imperial, foi exilado pelo imperador Isaac I, e morreu no exílio em 1059.

Diante de tudo isso, a postura da Santa Sé foi a seguinte ao longo do tempo: mesmo com o acréscimo do Filioque à Liturgia, não o impôs aos orientais, embora estes devessem reconhecê-la, como se deu por exemplo no Concílio de Lião II, em 1274, sob Gregório X. Mais explícito ainda foi o sábio Papa Bento XIV que, em 1742, na Bula Etsi Pastoralis, defendeu que “embora os gregos tenham a obrigação de crer que o Espírito Santo procede também do Filho, não são obrigados a professá-lo no símbolo” [= Credo – nota nossa]. Tal posição é válida até hoje, e foi reestudada em 1995, a pedido do Papa São João Paulo II, e parece mais um mal-entendido linguístico do verbo proceder do que uma questão teológica intransponível.

Sendo assim, com o advento do diálogo ecumênico promovido pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), as excomunhões foram levantadas de ambas as partes. João Paulo II queria se encontrar com o Patriarca de Moscou, mas não conseguiu, e Francisco, agora, realizou o sonho de “João de Deus”, em Cuba, para juntos agirem em favor dos cristãos perseguidos em grande parte do mundo, especialmente nos países de maioria ortodoxa.

Com mais esse passo dado nós constatamos esse “kairós” vendo os sinais dos tempos após tantos séculos de distanciamento. A busca pela unidade na diversidade deve prosseguir sanando as feridas e divisões e encontrando caminhos de fraternidade na bela e importante missão de anunciar a Cristo, Senhor e Salvador, ao mundo de hoje.

Certamente, esse encontro logrará bons frutos no diálogo ecumênico e poderá levar, de algum modo, à superação de toda essa história que vimos, pois não diz tanto respeito à integridade da fé, mas, sim, a problemas culturais, políticos, linguísticos que podem, com a força do Espírito Santo, ser superados.

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Francisco e Kirill, o grande encontro!

24/02/2016 00:00 - Atualizado em 25/02/2016 17:16

O encontro do Papa Francisco com o Patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa de Moscou, em Cuba, rendeu grande repercussão na imprensa, que deu ao povo uma noção do conteúdo da Declaração Conjunta por eles realizada no histórico encontro.

Um trecho de notícia veiculada pouco antes do acontecimento bem demonstra a pauta do evento: “A perseguição aos cristãos irá dominar a agenda do encontro, que deve acontecer por aproximadamente três horas. À luz da situação no Oriente Médio e na África, as duas igrejas decidiram pôr de lado as discordâncias existentes entre elas e unirem os seus esforços no intuito de salvar os cristãos do genocídio. O Patriarca e o Papa também deverão discutir o abandono dos valores cristãos, o que pode ser observado na Europa atualmente. Uma declaração conjunta deverá ser assinada no final do encontro” (notícia veiculada pela Unissinos). Foi esse o clima do texto que ao final do encontro foi assinado.

Seria interessante refletir sobre essa aproximação histórica, importante entre católicos romanos e ortodoxos, uma vez que eles têm veneráveis tradições e vasta literatura teológica dos primeiros séculos do Cristianismo, historiando – com base em Dom Estêvão Bettencourt, OSB. História da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2012, p. 184-190 – um pouco da separação ocorrida de modo forte em 1054, por razões históricas, culturais e teológicas, mas que tem dado grandes passos de aproximação com o diálogo ecumênico muito fomentado pelo Concílio Vaticano II (1962-65), na Unitatis Redintegratio.

Os antecedentes do cisma (separação sem negação da fé) possuem seus pontos, que bem mostram como no passado houve grandes diferenças entre romanos e gregos. Os gregos eram tidos como grandes intelectuais no campo da filosofia, da ciência e da arte, de modo que grande parte da elaboração das verdades de fé, nos primeiros séculos, se deu no Oriente até o Concílio de Constantinopla III (680/1). Daí o olhar depreciativo aos romanos e aos bárbaros invasores de Roma, como grosseiros e sem cultura. No entanto, os latinos tinham também suas qualidades, especialmente na prática da disciplina e do Direito, por isso tinham suas restrições ao aspecto metafísico (ou seja, além do físico) dos gregos. Surgia, assim, uma rivalidade dificilmente contornável.

Outro ponto é a língua. Até o século IV os documentos da Igreja, em Roma, eram redigidos em grego, bem como a liturgia era celebrada nessa língua, restando para nós até hoje o Kyrie eleison, ainda rezado ou cantado em algumas Missas no Ato Penitencial. No entanto, do século V em diante, o grego vai desaparecendo para dar lugar ao latim, dialeto do Lácio, região romana. Nova dificuldade na relação Ocidente e Oriente, dado que em Bizâncio não se valorizava o latim, e em Roma havia nítido e claro um distanciamento do idioma grego. Isso possibilitou mal-entendidos de ambas as partes, especialmente no que tocava aos documentos dos Concílios a necessitarem de intérpretes nem sempre fiéis aos originais. Aliás as dificuldades de traduções e suas interpretações ainda hoje causam dificuldades.

Também a liturgia ocidental e oriental tinham (e têm) diferentes tradições. Assim, o calendário da Páscoa é diferente, os latinos jejuavam no sábado, mas os gregos não; os ocidentais usam pão sem fermento para a Eucaristia, e os orientais, pão fermentado; o celibato é muito caro aos latinos, mas não ao clero diocesano oriental; o uso da barba é irrelevante aos latinos, mas muito estimado pelos orientais... Questões disciplinares e não de fé ou moral em si, mas que não havia grande interesse em debater ou, pior, só eram levadas a debate em tempos de controvérsias e animosidade, não produzindo frutos positivos, mas, sim, amargos.

Do ponto de vista histórico, em 380 surgiu nova celeuma: Bizâncio que sempre fora depreciada pelos romanos, tornou-se a capital do império ou a “nova Roma”. Sob o aspecto religioso, essa mudança marcou negativamente os latinos, pois a sé episcopal bizantina não tinha sido – como Roma, Jerusalém, Antioquia, Alexandria, – fundada por um Apóstolo, mas pelo Bispo Metrófanes, no início do século IV (315-325), como sufragânea da diocese de Heracléia.

Mesmo assim, naquele tempo de controvérsias históricas e teológicas, os bizantinos passaram a ter dificuldades de reconhecer a primazia de Roma no plano da fé, ou seja, o primado de Pedro ou do Papa, pois Constantinopla (cidade de Constantino) vivia o esplendor de uma grande corte imperial. No plano temporal, os imperadores eram chamados de Pontífices Máximos e, por isso, muito se imiscuíam nas doutrinas religiosas das igrejas orientais, mantendo-as sob seu controle, o que favorecia as doutrinas heréticas (negadoras das verdades de fé) e, por conseguinte, a contraposição ao Bispo de Roma, o Papa.

O problema teve fortes desdobramentos, de modo que alguns imperadores foram hostis contra os Papas: Justino I mandou buscar à força o Papa Virgílio em Roma a fim de tentar obrigá-lo a subscrever normas religiosas baixadas pelo imperador, por volta de 550; Constante II fez o mesmo com o Papa Martinho I que se opusera, em Roma (649) ao monotelitismo (doutrina que admitia em Jesus duas naturezas, mas uma só vontade, a divina), defendido pelo imperador; Justiniano II mandou prender em Roma o Papa Sérgio I por ele não reconhecer as inovações do Concílio Trulano (692), entre outros fatos dessa natureza que levavam cada vez mais a separar orientais e ocidentais.

A situação, já dramática, agravou-se ainda mais quando foi criado, no Ocidente, o “Sacro Império Romano da nação dos Francos”, tendo seu primeiro imperador, Carlos Magno, no ano 800, que recebeu a coroa pelas mãos do Papa Leão III. O Oriente viu nisso uma afronta, pois se só há um Deus e uma Igreja, o imperador – que reina em nome de Deus, diziam –, só pode ser único também. Era a unidade desfeita. Afinal, pensavam os orientais: como pode o Papa coroar um bárbaro e colocá-lo à frente do Sacro Império?

Em 858, Inácio, patriarca de Constantinopla, foi deposto por adversários políticos e tomou o seu lugar o patriarca Fócio, visto com bons olhos pelo imperador. Em cinco dias recebeu todas as ordens sacras e assumiu o posto sem que o patriarca anterior tivesse falecido ou renunciado. O Papa não reconheceu o novo patriarca que, desgostoso, levantou críticas aos cristãos do Ocidente. O Papa Nicolau I mandou missionários ocidentais à Bulgária, o que causou ainda mais animosidade, pois o rei Boris, recém-batizado, ainda não sabia se devia obediência ao Papa ou ao Patriarca. Também a mesma Bulgária decidiu se ocidentalizar, de modo a deixar Constantinopla ainda mais constrangida. Nesse contexto o patriarca, Fócio, enviou carta aos bispos orientais contra a atitude dos “bárbaros ocidentais”, bem como acusava Roma de ter alterado a fórmula de fé com o Filioque.

Esta fórmula diz que o Espírito Santo “procede do Pai e do Filho”, ao passo que os orientais afirmam que o mesmo Espírito “procede do Pai pelo Filho”. Ora, essa questão ficou mais acirrada nos séculos IX a XI, até a ruptura duradoura de 1054. Antes, porém, o Concílio de Constantinopla, reunido em 867, depôs Nicolau I, que morreu logo depois, e Fócio foi destituído por uma revolução palaciana. Inácio assume a Sé patriarcal. Em 869/870, foi celebrado o 8º Concílio Ecumênico de Constantinopla sob a direção de três legados do Papa. Fócio foi excomungado e a comunhão com Roma foi restabelecida, mas por pouco tempo. Sim, pois em 879, Fócio reassumiu a Sé de Constantinopla e, no mesmo ano, convocou um Sínodo que rejeitou aquele feito em 869/70 com a presença dos legados papais. Os latinos foram hostilizados e os gregos consideraram esse Sínodo o oitavo Ecumênico, mas os romanos não. Faltava a autorização do Papa. Com a morte de Fócio, a relação com Roma foi reatada mesmo em meio aos abalos e discórdias que vimos.

No século X, tempo difícil na vida da Igreja, houve a criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a dinastia dos Otos (962), que deixou os bizantinos muito irritados, pois parecia repetir a ação de 800, quando Carlos Magno foi coroado imperador. Ora, as relações com Roma, que já eram frias, se tornaram novamente tensas. Para mais agravar a questão, o Papa Bento VIII, em 1014, introduziu no Credo da Igreja de Roma o Filioque, a pedido do imperador Henrique II.

Ora, o patriarca Sérgio, de Constantinopla, reagiu espalhando os escritos de Fócio sobre a questão. Em 1043, uma nova celeuma se dá: Miguel Celulário, hostil a Roma, mandou fechar as igrejas dos latinos, confiscou mosteiros destes e lhes fez acusação por usarem pães ázimos nas Missas. Em meio à confusão, um funcionário do Império chegou a pisotear as hóstias dos latinos, dizendo que não estavam consagradas. Diante de tudo isso, o Cardeal Humberto da Silva Cândida, homem erudito, escreveu uma refutação com o título de Diálogo, acusando os gregos de seguirem a doutrina de Macedônio, negadora da divindade do Espírito Santo.

Contra as ideias de Celulário, Constantino IX, imperador bizantino, desejava ter boas relações com o Papa Leão IX; por isso, em 1054, aquele pontífice enviou a Constantinopla uma legação de três prelados. Constantino IX mandou queimar, como gesto de aproximação, teses anti-romanas, a fim de favorecer o diálogo. Celulário, porém, se mostrou intransigente e proibiu os latinos de celebrarem a Santa Missa na igreja de Santa Sofia. Ora, a isso os legados papais agiram com extrema severidade: deixaram, na presença do clero e do povo, sob o altar, uma Bula de excomunhão contra Celulário e seus seguidores, e retornaram para Roma.

Pensavam que o patriarca voltasse atrás, mas ele não o fez. Ao contrário, ele convocou o povo a revoltas contra o Imperador, acusando-o de cúmplice dos romanos, levando Constantino IX a reagir com violência. O patriarca não se intimidou e lançou excomunhão sobre o Papa e seus legados, além de convidar os Bispos do Oriente a seguir seu exemplo. Teve êxito grande em seu pedido, mas, em 1057, ao ambicionar o trono imperial, foi exilado pelo imperador Isaac I, e morreu no exílio em 1059.

Diante de tudo isso, a postura da Santa Sé foi a seguinte ao longo do tempo: mesmo com o acréscimo do Filioque à Liturgia, não o impôs aos orientais, embora estes devessem reconhecê-la, como se deu por exemplo no Concílio de Lião II, em 1274, sob Gregório X. Mais explícito ainda foi o sábio Papa Bento XIV que, em 1742, na Bula Etsi Pastoralis, defendeu que “embora os gregos tenham a obrigação de crer que o Espírito Santo procede também do Filho, não são obrigados a professá-lo no símbolo” [= Credo – nota nossa]. Tal posição é válida até hoje, e foi reestudada em 1995, a pedido do Papa São João Paulo II, e parece mais um mal-entendido linguístico do verbo proceder do que uma questão teológica intransponível.

Sendo assim, com o advento do diálogo ecumênico promovido pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), as excomunhões foram levantadas de ambas as partes. João Paulo II queria se encontrar com o Patriarca de Moscou, mas não conseguiu, e Francisco, agora, realizou o sonho de “João de Deus”, em Cuba, para juntos agirem em favor dos cristãos perseguidos em grande parte do mundo, especialmente nos países de maioria ortodoxa.

Com mais esse passo dado nós constatamos esse “kairós” vendo os sinais dos tempos após tantos séculos de distanciamento. A busca pela unidade na diversidade deve prosseguir sanando as feridas e divisões e encontrando caminhos de fraternidade na bela e importante missão de anunciar a Cristo, Senhor e Salvador, ao mundo de hoje.

Certamente, esse encontro logrará bons frutos no diálogo ecumênico e poderá levar, de algum modo, à superação de toda essa história que vimos, pois não diz tanto respeito à integridade da fé, mas, sim, a problemas culturais, políticos, linguísticos que podem, com a força do Espírito Santo, ser superados.

Cardeal Orani João Tempesta
Autor

Cardeal Orani João Tempesta

Arcebispo da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro